CARTA DE UM ABORTADO
Não consegui ver a luz do sol.
Uma máquina má me despedaçou
e me sugou para fora do ventre
de quem devia me proteger.
Meus restos foram atirados
em uma cesta de lixo.
Morto, libertei uma mulher
e um homem
de todas as obrigações
que se deve ter com uma nova vida.
Não tive nome,
não tive sonhos,
não tive certezas.
Era só um estorvo
na barriga de uma mulher.
Fruto de um jorro, de um orgasmo,
de uma noite fútil
de um falso amor.
Poderia ter sido alguém,
ter tido um nome,
ter construído algo,
ou destruído,
ou vivenciado uma cota de fracassos
e vitórias.
Mas não me foi dada a escolha:
eu era o resto de um segundo de prazer,
era um óbice, uma ideia que não devia vingar.
Morri.
Mataram-me.
Mas há quem diga que não é ruim
que seres como eu morram.
A mulher escolhe.
E eu sou a doença
a ser combatida.
E eles ainda dizem
que querem preservar
a vida...