FOLHAS SOLTAS DO CADERNO
Eu estou perdido em amores
Se não fosse assim jamais teria chances
De escrever qualquer verso
Sim, estou enamorado por tudo que me cerca
Por mim e pelo mundo
Que ninguém tente roubar-me este momento
Nem qualquer paixão,
Ninguém poderá fazê-lo
Nem que meu espelho diga o contrário
Nem de minha imagem gosto mais
Que de mim mesmo
Sou atavicamente ligado a este
Ser que mora comigo
e que sem mim não tem vida
Nem existência
Viajamos juntos pelo mundo do faz de conta
Esgueiramos-nos para ver dentro das pessoas
O que se passa lá não é diferente do que se passa aqui
Mesmo assim queremos ver e decifrar seus rostos de dúvidas
As amostras colhidas de suas intimidades me fascinam
Eu as exponho ao sol
E me desagrado delas assim que as vejo abertas
Porque nenhum homem é diferente do outro
No sentir, no sofrer no amar, no querer, no ansiar, no temer, no desejar, no crer, no sonhar
Mesmo assim queremos fracioná-los em seus mistérios, para saber
Como é seu universo,
Saber o que pulsa nos seus corações
O que vomitam suas bocas quando estão consigo mesmos
Eu não tenho inveja de nenhum ser
Nem do passado, nem do presente
Todos escamotearam a realidade
E criaram mentiras e foram mentiras e escreverão mentiras
Que gostamos de ler e admirar porque somos treinados
Para acreditar na mentira
Toda a humanidade é uma afirmação que contradiz a verdade
De tudo nesta vida, eu invejo apenas o cristal,
Puro, cristalino, verdadeiro, silencioso e duradouro
Que foi purificado pelas mãos do tempo
Uma purificação feita pela paciência dos milênios
Fora dele tudo é impureza
Quanto tempo tu precisaste para ser assim tão puro cristal?
Eu desejo um dia estar dentro de ti, morar dentro de ti
E ser puro como tu
Por enquanto, serei pedra abrupta a ser talhada pelo tempo
Mas sei que nenhum homem é um cristal,
Nenhum homem poderá ser um cristal
Pois nenhum homem resiste ao tempo
O tempo é o colapso de todos os sonhos humanos
O tempo desfaz nossas mentiras
Assim somos impuros e não transparentes
A antítese de uma exegese,
Um livro fechado que ninguém vai abrir
Porque os homens estão cansados ou porque são obtusos
Porque creio que a maioria deles defecou a própria sabedoria
E suas almas contem o lodo dos pântanos e nunca serão limpas
Eu por exemplo sou um casulo, um tumulo que não se abre
Para receber os corpos de minhas fraquezas confessas
Assim não poderão nunca saber de mim
Pois sou uma metáfora
De mim mesmo
Sou, aliás, várias metáforas de mim mesmo
Se um dia for descoberto,
Contudo saberão
Que venho de uma terra em que os homens
São apenas absurdamente infelizes
Eu, porém sou ainda pior
Pois sou infeliz e absurdo
Sou absurdo porque sou paradoxal
Sou paradoxal sem ser vasto nem profundo
Ainda assim sonho às vezes neste mundo ilógico e coberto de chagas
Sonho nas noites em que o silencio ganha dimensões amargas
O silencio borda-me na alma as profundezas, que me faz parecer mais humano do que sou
Faz-me ver uma borboleta azul
Passeando na floresta sob véus da negação
De onde vens borboleta?
Certamente não és do meu mundo?
Pois nós expulsamos dele a leveza da alma
Em que flutuas no nada
Concretamente
Nós temos a consciência a nos guiar
Este maldito espelho dos nossos horrores
E tu que fazes para ser feliz borboleta?
Apenas vive,
Ah bom, pensei que houvesse alguma mágica
As almas como a tua que vivem de sonhos
Vivem nas alturas
Eu vivo cá embaixo, com todos os homens
No mundo triste dos homens
Consolo-me porque tenho ouvido
Nas noites tontas,
Uma voz a me dizer
A voz do infinito
A me dizer
Nas noites tontas
Que deverei retornar
Para onde me pertenço
Que estou aqui de passagem.
Depois me aquieto e concluo fragmentado,
Que me amo
Porque não sou feliz.