SONETOS ÀS ETNIAS QUE FORMARAM O POVO BRASILEIRO

BASSORA-BASRA I (2003)

Contemplo a noite em áspero veludo

no terciopelo fino dos solares:

proclamo da almenara meus cantares

e ao ver os almocreves, não me iludo.

A torre de atalaia é meu escudo,

broquel fendido em gestos de alamares,

brandenburgos puídos de avatares,

solitário prazer de aguazil mudo,

a trepidar no alcázar da quimera,

de heroicos deveres quilombolas,

alhambra morta no furtar dos anos...

Cada estrela, uma vulcânica cratera,

de vinho e malva, cerâmicas e estolas,

nas faces ancestrais dos muçulmanos...

BASSORA-BASRA II

Nessas histórias de Sindbá lê-se Bassora,

próspero porto de que saía em viagem:

por cinco vezes pelo Índico em coragem

firme afrontando sua fúria constritora!

De lá partia em cada nau conquistadora,

enfrentando canibais, Roca e voragem,

seus marinheiros a perder nessa paragem,

pela borrasca a mastigar devoradora!

Mas não se achava no original esse Sindbá,

acrescentado por um tradutor francês,

sobre a saga de Ulisses decalcado...

Como tampouco Aladim se encontra lá,

garimpado de papel de arroz chinês,

por mais que seja entre nós tanto lembrado!

BASSORA-BASRA III

Robert Burton, seu primeiro tradutor,

chamou-a de árabe, de fato era iraniana,

em farsi redigida... ou mesmo indiana

a maior parte desse ideário sedutor...

Vocabulário de magia introdutor,

talvez mais do que as lendas com que espana

o imaginário da hagiologia romana, (*)

nesse arabismo de romance encantador,

(*) Conjunto das histórias de santos cristãos.

que desde a infância me deixou influenciado,

junto comigo nem sei a quantos mais:

talvez por isso exista em mim tanta riqueza!

Caminho abrindo para as lendas do passado,

repassadas desde tempos perenais,

por europeus em seus invernos de pobreza...

GERMÂNICOS I (2003)

Os primeiros colonos nos chegavam

na época em que plantaram os trigais;

quase todos protestantes, escutavam

de meu pai os sermões episcopais...

A intolerância das estâncias enfrentavam,

pois não queriam que viessem mais;

que era terra de pastagens, afirmavam

e não de trigo: quando muito milharais.

Porém foram ficando, ainda que o trigo

hoje em dia não se plante mais aqui:

os gafanhotos ganharam, na verdade,

mas seus netos aquerenciaram neste abrigo:

à noite estudam, trabalham na cidade:

são outras vozes que, ao passar, ouvi.

GERMÂNICOS II

Ai, que meus mortos voltam! Lembro agora

Carlos Kluwe, que renovou Bagé:

Criou a Fazenda Experimental: hoje é

da Agro-Vet o campus avançado.

Carlitos e Olga Oberst, nesta hora

lembro também. Andavam sempre a pé,

brincavam sempre, em privações até,

aos noventa ainda vivendo lado a lado...

Lembro Ruy Beckman, que foi grande inventor

e ficou desconhecido. Poucos pensam

nas coisas feitas por um homem do interior.

Wilhelm Horvath, austríaco senhor,

cujas cerâmicas e tapeçarias se adensam,

mais tantos outros, relembrados com calor.

GERMÂNICOS III

Antigamente, aqui só dava pelo-duro:

portugueses e espanhóis, de índio só pitada,

um eventual pé na cozinha, um quase nada,

pele clara ou requeimada, pelo escuro.

Sempre havia açorianos, meio a furo,

ou rostos tramontinos, a vista mais gateada,

nos cabelos mais claros, cor melada,

assim chamavam ao tal nortista puro.

E por mais que hoje dancem o pezinho

ou o maçanico os netos de imigrantes,

os seus avós nem sequer tinham chegado:

se aprochegaram só degavarinho,

uns se casaram, outros comerciantes,

depois que o norte já ficou muito povoado.

GERMÂNICOS IV

Esta cidade, como todas, microcosmos

forma do mundo. Após o quebra-quebra

em que até ter um rádio dava zebra,

os alemães escorreram para cá.

Os quartéis definiam o macrocosmos:

vinham da serra ou do norte deste estado;

o recruta namorava e então, casado,

engajava na tropa, achava emprego ou já

iniciava o seu comércio. Plantação

poucos deles queriam, toda a vida,

desde piás se acordavam com a enxada.

Nesta cidade nova, profissão

qualquer servia, exceto aquela lida...

E depressa se mesclaram na invernada.

GERMÂNICOS V

Depois, fundou-se aqui universidade,

que nas colônias ainda não havia:

e os jovens alemães, piá e guria,

vinham todos a Bagé para estudar...

Outros mais velhos, escolheram a cidade

para serem professores; serventia

encontraram por aqui, em outra via,

se aquerenciaram, vieram pra ficar.

Mais tarde foi o arroz, porque os trigais

nunca duraram muito, os gafanhotos

vieram da Argentina; o clima e a terra

serviam bem melhor para arrozais.

Fizeram as barragens, mais devotos

de produzir comida que ir à guerra...

GERMÂNICOS VI

Os "alemães", naturalmente, eram

de muitos povos, suecos, poloneses,

austríacos e tchecos, holandeses,

até da Rússia houve alguns que nos vieram.

Os italianos também aqui trouxeram

cabelos claros; judeus e finlandeses;

havia louros até sírio-libaneses,

que chamavam de turcos; mas fizeram

exceção para os cabelos de outra cor.

E houve padres que deixaram da batina

e freiras que fugiram dos conventos,

atraídos por dinheiro ou por amor.

Sua progênie partilha a mesma sina:

todos gaúchos em alma e pensamento.

GERMÂNICOS VII

Agora, já se veem por toda parte:

milicos e estudantes, professores,

advogados, dentistas ou doutores,

pobres ou ricos, como Deus os farte.

A mistura se fez mais por casamento:

cabelos pretos com nomes alemães;

cabelos claros, iguais aos de suas mães,

mas com nomes pelo-duro em documento.

Passou o tempo do preconceito mouro

que sofriam, de espanhol e português,

que a maioria demonstrou não ter razão,

pois qualquer um que tem cabelo louro,

seja italiano, polaco ou libanês,

passou a ser chamado de "alemão"!...