O Ritmo do Mundo

O céu de nuvens carregadas e cinzas

Misturava-se ao rio de águas tão escuras quanto cristalinas.

Fundiam-se no horizonte formando uma sinfonia fina

Tão sombria, tão linda, tão fria.

O sol se escondia

Não dava para saber a hora

Mas era algo entre o meio e o fim do dia.

Era mais ou menos assim que acontecia.

Lembro que tinha ventania.

O vento vindo do leste ventava como se nada houvesse

Como se tudo bem estivesse

Como se não vivêssemos sem nenhum alicerce

Como se ainda seguíssemos algum mestre.

O vento ventava e não se importava

Não poupava, não parava, não cansava

Levando o que encontrava até as nuvens carregadas

Lá no céu, que alcançava o fim.

Sem se abalar com as rajadas pesadas

O vento também ventava em mim.

O varal esforçava-se para os lençóis segurar

Os tecidos dançando sem cadência ou resistência, naquela malemolência a bailar

Suas cores contrastavam com o acinzentado do rio, do céu, da rua, do mundo, de todo lugar.

Ali eu soube, era hora de parar e contemplar

Sem faróis a guiar

Sem heróis a invocar

Era cinza, mas era bonito.

Era escuro, mas estranhamente seguro.

Chovia, mas tudo seguia a brilhar.

Agora eu sei, somos miúdos demais para compreender o ritmo do mundo

Onde tudo: céu, rio, vento, terra ou o oceano, lá no fundo

Tudo continua o seu curso

Alheios, cegos e surdos

Aos nossos gritos mudos

De quem não dança porque não ouve a música tocar

Queremos entender de tudo e a tudo confrontar

Julgamos o mundo pequeno diante da nossa fome de explorar, desbravar e conquistar

E enquanto enlouquecemos com calma, pudor e falsa moral

O vento só venta e faz balançar os lençóis no varal

A chuva, indiferente à nossa dor e ânsia, vem vindo sem hesitar

O ritmo do mundo transforma o rio em nuvem, a nuvem em chuva, a chuva em rio outra vez, não há como evitar

O mundo precisa continuar

Apesar dos tolos a bradar

Dos lobos a uivar

Dos bobos a discursar.

Apesar de todo mundo falar sem nunca escutar.

Os canarinhos também não lutam contra o vento a ventar

Estão totalmente desinteressados em resistir e enfrentar aquilo que não se pode domesticar

São felizes porque não precisam tentar, não precisam provar, não precisam desbravar e conquistar;

Só precisam voar conforme o vento levar.

Naquele dia, sem saber se anoitecia ou amanhecia

Escutei pela primeira vez, do mundo, a sua sinfonia

Foram só alguns segundos,

Mas eu o ouvi cantar.

Sua mansa melodia

Preenchendo cada canto, cada segundo, cada minuto

Da terra ao oceano mais profundo

Do empresário ao vagabundo

Da sala de estar à mesa de bilhar

A verdade é que não importava se era noite ou se era dia,

Se amanhecia ou escurecia

Se não havia sol e se chovia

Se era prosa, canto, choro ou poesia

Só sei que eu compreendia.

Era o rio que, ao céu, se unia

Naquele ritmo tão alto que ensurdecia

Até mesmo quem não o ouvia.

E assim a vida seguia.

Parece mentira

Mas neste cenário também tinha

Um pai, uma mãe e uma filha

Mais um bebê na barriga.

Estavam por ali, sabendo que o tempo caminha

Conforme a torrente do rio, do céu, do vento; da chuva que vinha.

Veloz ou lento, só fique atento:

O presente sobre a escrivaninha não é alento e nem sustento: é armadilha!

Bem que tentaram nos avisar: “nós somos continente, não ilha”.

Somos família.

Nós, humanos, também fazemos parte deste bando,

Somos matilha seguindo pela mesma trilha, soldados escondidos no mesmo flanco.

Não adianta, nós não nos descolamos: dançamos ao som deste compasso mundano.

Vamos seguindo conforme vai a corrente

Movendo-se no ritmo do mundo que canta, da chuva que chove, do vento que venta, do homem que sente

Levando pipas, lençóis, levando amores, nuvens e sementes,

Levando ao céu a terra

Levando a gente.

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