Nascente

¿E agora, José?
A fonte secou...
O cavalo não galopa mais,
a chuva não pinga,
a vida não vinga,
a Mãe chora...
A existência fenece,
o presente empobrece,
o futuro escurece,
o passado envergonha,
o remorso emudece,
o corpo enfraquece,
seu menino adoece
e sua mulher, José,
foi embora...

¿E agora?
 
¿
E agora, João?
A cartilha que não estudou,
o livro que não leu,
o filho que não educou,
o voto que anulou,
a estupidez a que se abarcou
e o pior:
a aguardente acabou.
 
¿
E agora, você?
A erva que fumou,
a droga que cheirou.
¿De que valeu “curtir o seu barato”,
a sua “transcendental viagem”?
A tudo assistiu,
a tudo aceitou.
Passivo,
pusilânime,

imoto.
Olhou tanto pro alto...
Pisou na lua,
tocou o sol;
mas pro lado não olhou.
¿E agora
que a usina vazou;
que o monstro da lagoa emergiu
e as estrelas caem?
 
¿
E agora, doutor?
O bom-dia que não deu,
o perdão que não pediu,
as facetas que emulou,
as mortes que financiou,
as almas que comprou,
a derrota que não aceitou,
o lucro que logrou.
Juntou tudo em vão.
A tirania apoiou,
a mata queimou,
o professor agrediu,
a criança não cuidou,
o idoso preteriu.
Traiu seu irmão...
 
¿
E agora, doutor?
Agora que você descobriu
que não adianta mais enganar;
que seu bilhete pro paraíso é falso;
que seu jatinho não chega lá;
que seu dinheiro não compra tudo,
não tem mais valor.
Cavou seu fosso,
achou-se ser eterno moço.
Em seu esquife blindado
não cabe seu volume morto,
não cabe sua coleção de armas,
seu curso de tiro,
não cabe sua opulência,
sua fidalguia,
não cabe seu egoísmo,
seu ódio;
mal cabe o seu corpo.
¿E agora, doutor?
Agora que você viu
o quanto é fundo esse poço.
 
¿
E agora, mulher?
Você que de verdade não me beijou;
que dissimulou o amor;
que pôs fogo em meu corpo;
que me fez desejar;
que me fez acreditar;
que me fez pecar;
que me sonegou carinho
e por fim me brindou desamor.
 
¿
E agora, Conceição?
Você que me doou à luz;
que me deu o seio e meu corpo avigorou;
que afagou meu choro;
que me falou as primeiras palavras de amor;
que manou acalanto;
que me ensinou que nem tudo que reluz é ouro;
que me quis peregrino;
que me ensinou a orar;
que me ensinou o louvor
e eu não entendi os sinais.
 
¿
E agora, eu?
Agora que me sinto batendo à porta do céu
e ela não abre.
¿De que valeram meus protestos?
¿De que valeram meus insultos?
Poderia ter feito mais;
mas não me dei conta.
¿Onde está o meu analgésico?
Encolho-me num canto,
enrugo meu rosto,
derramo meu pranto;
ponho-me de joelhos
e só faço é pensar...
Há dúvidas em mim.
¿Eu acredito no Verbo?
¿O Verbo acredita em mim?
¿E agora, eu?
¿O que fiz além de escrever livretes
e folhetins?
 
¿
E agora,
que não mais dialogam o violoncelo dolente
e o piano afinado?
Que da floresta não cuidamos e ela pereceu;
que prevaleceu nossa falta de entendimento;
que provamos do nosso próprio veneno,
doce em adâmicos tempos
e ora amargo,
 a um minuto do fim.
¿O tempo é finado?
 


A fonte secou.
¿E agora, que o orbe está cinzento,
que da estrela da manhã não se vê mais o alvor
e ela será para poucos,
que os deuses astronautas
não conseguirão resgatar a todos,
que não mais adianta tanto rezar,
que se calou a palavra amor?
¿E agora, que a “promessa” não se cumpriu,
que o indulto é um embuste,
que Deus não nos perdoou
e a profecia segará?
¿E agora?
É morta a nascente
e morre o nascente.
¿E agora,
será que ainda há tempo?
¿Será que há como voltar ao começo?
¿Será o fim um lugar
ou um momento?
¿Será que o fim é onde e
quando tudo começou?

 
   
Interação da brilhante e querida escritora Marlene Toledo:

E agora...?

E agora, você?
que tão pouco fez,
que com sua desfaçatez
será a bola da vez...
por as regras infringir.


E agora, eu?
que pouco construí
e muito destruí.
Bem sei que não adianta chorar,
a vida lamentar,
fugir.


E agora,Senhor?
que tudo ruiu,
que a profecia se cumpriu...
adianta pedir-Te perdão?
Só agora então...
lembro-me de rezar
o ato de contrição.

 
(obrigado Marlene. Muito obrigado)

   Esta poesia surgiu da premente necessidade de se cuidar da água do planeta.
   A princípio ela focaria apenas este tema, buscando enfatizar os descuidos com as nascentes de água doce. Mas, não há como falar da água, sem falar da vida. E não há como falar dos ruinosos usos da natureza sem falar dos perniciosos comportamentos do homem. Destarte, esta poesia, por sua vontade própria, abordou também os desmandos em destaque nos dias atuais. Ela fez críticas e não livrou, nem mesmo, o seu próprio autor.

   O formato e alguns versos foram inspirados na escatológica poesia "E agora, José" de "Carlos Drummond de Andrade", e na interpretação, para essa poesia, do personagem "Zé da Praia" de "Silvio Matos" (
https://www.youtube.com/watch?v=TTWEpp1s5Ps).
   Para ela fiz um áudio e o publiquei aqui no Recanto, vestindo-o com a música "Nightbook II" de "Ludovico Einaudi".
   Ouça o áudio deste grito
clicando aqui ou no link abaixo. Ponha o "headphone" e aumente o volume. Lembre-se de agitar antes de usar.
   Desde já, meu muito obrigado a quem ler esta e ou ouvir o seu áudio.
   Um abraço a todos.

(imagens obtidas da internet, todos os créditos e agradecimentos aos seus criadores e proprietários)