O CHÃO QUE NUNCA SERÁ DE NINGUÉM.

Faltava pouco, muito pouco, quase nada.

As pernas já não obedeciam mais minhas ordens,

nem sei mais quantas pernas tenho,

não sei mais quantos poros tenho,

não sei mais quem sou eu.

Apesar do frio gélido,

toda minha alma suava,

como nunca suara na vida.

Sou um morto-vivo vagando a esmo,

à deriva em mim mesmo,

vindo do nada e indo pra lugar algum.

Pra lugar algum.

Montanha bendita, montanha.

Nem sei mais quantos ossos tinha.

Nem sei mais nada.

Não sei mais quem sou eu.

Cada novo passo viscerava mais aquele chão,

que nunca será meu.

Aquele chão será sempre dela,

sempre dela.

Por mais que teimasse em chegar lá encima,

por mais que teimassse em desvirginar suas entranhas,

por mais que teimasse em driblar suas ciladas,

por mais que teimasse em desvendar seus becos,

aquele chão sempre será dela, nunca será meu.

Nunca será meu. E de mais ninguém.

Montanha bendita, montanha.

Vai, cara, só mais um pouco. Guenta firme, vai lá!

Pior é que não tinha como parar o jogo,

dizer simplesmente, ok, valeu, não quero mais. Tchau.

Meu sangue parece um fiapo duro rasgando minhas veias.

A respiração ofegava como se fosse meus últimos instante de vida,

não sentia mais mais meus dedos,

nem meus medos, nem meus folguedos,

acho até que já morri.

Montanha bendita, montanha.

Penso na minha família, na minha vida, nas minhas coisas.

Pareço mais um condenado cavando a própria sepultura

com as próprias unhas.

Estou num desespero insano que nunca entendi direito,

mas que dizia, vai cara, guenta mais um tiquinho, vai irmão.

Deus deve te largado tudo o que tem que fazer

só pra ficar comigo nesse momento.

Talvez esteja rindo de mim,

talvez esteja chorando por mim,

talvez esteja rezando por mim,

vai saber. Vai saber.

Deus não foi capaz de estender a mão,

dar o ombro,

dar um empurrãozinho de nada,

dar o colo, dar um gole de água, ou um pedaço de pão.

Deus cadê você? Cadê você?

Montanha bendita, montanha.

E ainda tinha a volta, ainda tinha a volta, a volta. A volta.

Quando achava que não dava pra andar um centímetro de nada,

dava à luz um novo sopro de vida,

um novo rebento de fé.

Quando minha única vontade era deitar

e dormir naquele chão gelado pra sempre,

um novo grito de vida vinha de dentro de mim,

vinha do céu, vinha dos ventos, vinha do frio,

vinha de Deus.

Vinha de Deus.

Por certo vinha de Deus.

Então quele zumbi renascia moleque,

com energia de sobra saindo pelos seus poros,

pelo vão dos seus ossos,

imantando cada músculo,

cada pelo do seu corpo.

fazendo seu sangue virar brasa viva.

Montanha bendita, montanha.

Entendi que o tempo da montanha era o dela,

não adiantava forçar a barra,

se ela quisesse que eu subisse,

eu subiria.

Se não quisesse, babaus.

Se eu fosse capaz de aguentar todas chicotadas do frio,

todos gritos ensurdecedores do meu cansaço,

todos fardos espinhosos da dúvida,

tudo o mais seria possível.

Tudo o mais seria possível.

Quando a mente da gente quer,

a mente da gente manda.

Então o corpo abaixa sua cabeça,

curva sua razão,

e obedece todas nossas ordens feito servo fiel.

Montanha bendita, montanha.

Quando o pensamento vira olho de lince,

desprezando todas rebarbas, todas tentações,

todos encantos que ficam zanzando ao redor,

a gente fica mais forte e imponente

do que aquela montanha toda.

Talvez seja esse esse o segredo,

se é que existem segredos.

Domar a mente é preciso,

colocá-la deitada na nossa mão,

decapitando os pensamentos que insistem

em encher nossa alma de infinitas amarras,

que insistem em pendurar infinitas âncoras nos nossos pés,

que teimam nos jogar buraco abaixo sem descanso.

Que insistem em fazer da nossa energia

uma coisa sem vida, sem cor, sem cheiro,

sem textura, sem varanda, sem luz.

Ser capaz de se curvar diante dessa obra de Deus

e, ao mesmo tempo,

virar dono dela,

dono de cada pedaço do seu chão,

dono de cada pedra que repousa calada no nosso caminho,

nos nossos atalhos,

nos confins mais confins da nossa alma.

Assim chegaremos no topo,

em quaisquer topos que quisermos alcançar nessa vida.

Assim aquela montanha imensa ficará inteira aos nossos pés

pra todo o sempre.

Pra todo o sempre.

Assim todas montanhas ficarão aos nossos pés pra todo o sempre.

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Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 02/02/2012
Reeditado em 02/02/2012
Código do texto: T3475725
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