LIBERDADE / LUA DE FOGO
LIBERDADE I (6 JUL 11)
Contemplo como voam os albatrozes,
sua revoada livre, em aparência...
Como os humanos aguardaram, com paciência,
o tempo de imitar pairantes poses!...
Sem perceber que apenas são algozes,
o seu pairar não mais do que indolência,
enquanto aguardam dos peixes a aparência,
para caçar com bicos ágeis e atrozes...
Porque os pássaros não são livres, realmente.
De sua fome são escravos permanentes,
por seu imenso consumo de energia...
E quando pairam nos ares, simplesmente,
só economizam os seus remanescentes:
comem dois terços de seu peso a cada dia!
LIBERDADE II
Além disso, dependendo da estação,
a maioria é forçada a obedecer
ao impulso de outras plagas conhecer,
seguindo instintos, sem qualquer razão.
De certo modo, mais livre é esse pavão
ou o canarinho, por alimento ter.
Alpiste suficiente e até para beber
um recipiente colocado em sua prisão.
Comem menos e, por certo, vivem mais
que nessa luta diária por comida.
Ou quando adejam, a beber de um rio,
na exposição a predadores naturais,
sua melodia num instante interrompida,
como quentes refeições em dias de frio...
LIBERDADE III
Que liberdade, então, a Natureza
concede a esses belos passarinhos?
A liberdade de vigiar seus ninhos
contra qualquer inimigo, com certeza?
A obrigação, confundida com nobreza,
de minhocas ir buscar para os filhinhos?
Sua liberdade, cerceada por espinhos,
em habilidades de genética proeza?...
Ou quem sabe, é a pura negligência
de soltar os seus dejetos ao acaso,
sem se importar onde o guano se desfaça?
Diria mais ser um sintoma de impotência,
pois será liberdade esse descaso
de defecar em cima de quem passa?
LIBERDADE IV
E contudo, como é belo o seu voar
sobre as águas do oceano matutino...
Mil estrelas refletem o destino
que o Sol prodigaliza em seu raiar...
Coroa de diamantes a espalhar,
em cada onda, ao vento peregrino,
cada marola ou crista um brilho fino
que nenhum albatroz quer devorar...
Somente nós aprendemos a voar
e escolhemos o destino. O albatroz
se vê forçado a voar aonde precisa.
Mas mesmo sendo maquininhas de matar,
nada destroem, com indiferença atroz,
senão aquilo que à permanência visa...
LIBERDADE V
Afinal, mal descoberta a aviação,
já os humanos inventaram bombardeiros...
Ou davam tiros de pistola, nos primeiros
monomotores de incerta construção...
Mas é preciso lembrar que a criação
não determina aos pássaros ligeiros
viver com inocência... Bandos inteiros
se reúnem, a atacar sem compaixão,
os invasores de seus campos de caça.
Não se dão bem albatrozes com gaivotas...
Nem são fragatas irmãs dos pelicanos...
Condenar somente a nós é uma pirraça:
são assassinos os bandos de cocotas,
bem mais ferozes que a maioria dos humanos...
LIBERDADE VI
Por um lado, os albatrozes são lixeiros:
comem dejetos lançados por navios...
Não podem ter os estômagos vazios;
para morrer de fome são ligeiros...
E pela terra os pássaros, certeiros,
comem insetos em continuados fios,
mais eficientes do que os desvarios
dos agrotóxicos lançados nos terreiros...
Mas liberdade, que é bom, eles não têm:
apenas fazem o que a Natureza manda,
como se fossem por ela programados.
Enquanto muita escolha se nos vêm,
mesmo que seja nada mais que a branda,
tranquila fuga para sonhos encantados...
LUA DE FOGO I (9 jul 11)
A Lua surge no final da madrugada,
vermelha e quente, qual sol de verão...
Bola de fogo que projetou o dragão,
habitante de sua face iluminada...
A Lua surge qual farol da madrugada,
amarelada bolha de sabão,
que São Jorge perfurar procura em vão:
é uma bola de cristal ensimesmada!...
A Lua surge qual moeda desejada,
olho de âmbar de gigantesco anão,
olho fundido na forja da alvorada,
Lava expandida em clara compulsão,
a devorar dos arbustos a galhada,
no heliotrópio gentil dessa explosão...
LUA DE FOGO II
São Dragão e São Jorge é que a disputam:
um a devora, ao menos uma vez,
no transcurso normal de cada mês,
que no restante os dois, ferozes, lutam...
E tanto pela Lua ambos labutam,
que ela esconde a sua prateada tez,
na palidez da prata e nem a vês,
e tais heróis só seu combate escutam...
Mas assim que se acalmam esses dois
e vão dormir um pouco, ela retorna
e vai crescendo, aos poucos, gentilmente,
para outras noites iluminar depois,
em sua globular, líquida forma,
a inspirar o amor a tanta gente!...
LUA DE FOGO III
Durante o inverno, São Jorge uma corrente
prende ao pescoço de seu feroz parceiro.
O fogo ele suspende, sorrateiro;
cessa da lança o lampejar frequente...
Que então se entregam a disputa diferente:
jogam xadrez em um vasto tabuleiro
ou então a tava, esse jogo mais fuleiro,
lançado em cancha pela nossa gente...
Pois que faria São Jorge, sem o dragão?
Ou que faria São Dragão sem o seu Jorge?
Um mata o outro e o outro ressuscita...
Porque é essa luta que à Lua dá razão...
Quando se cansam, a guardam num alforje,
até que o tédio, outra vez, à luta incita...
LUA DE FOGO IV
Seu alforje, lentamente, vão abrindo
e surge apenas a ponta de uma unha...
A pouco e pouco, vai crescendo a cunha,
que em sorriso invertido vai luzindo...
Aos poetas cá de baixo descobrindo
a sua nudez, sem véu de Catalunha,
esse seu riso triste e sem alcunha,
mais zombaria que encantamento lindo...
E nos dias de verão, com lua cheia,
São Dragão abre a bocarra, novamente,
e solta um ronco em vermelho fogaréu...
Por isso a Lua, que ao dragão receia,
se cobre de um rubor luminescente
e rubicunda dispara pelo céu!...
LUA DE FOGO V
Mas outras vezes, é só a bola de fogo,
expelida pela raiva do dragão,
quando São Jorge, com melhor golpe de mão,
ganha na bocha, com pleno desafogo...
Ou, por engano, a bola salta logo
e lhe acerta num dos pés, sem compaixão...
Com a dor, o infeliz solta um rojão
e queima a Lua inteira, sem mais rogo...
Foi por isso que cantou Catulo da Paixão,
"quando vermelha nasce a Lua no sertão,
dentro dalma, onde flutua, também rubra, nasce a dor..."
Que esse astro, assim impado de vermelho,
do sofrimento do dragão se torna o espelho,
a fulgurar, nessas noites de terror!...
LUA DE FOGO VI
Pois não se espera da Lua que incendeie
as nossas matas, cerrados e sertões...
Só desejamos que acenda os corações
com mais amor, por essa vida que permeia
bosques e prados... E a mente nos rodeia
com o toque esbranquiçado de ilusões,
a bordejar tristezas e paixões,
que reabrem dos medíocres a veia!...
Porém eu, já não preciso de cereais
para escrever "as mal traçadas linhas"...
Nem de aveia, nem de milho e nem de trigo...
Porque me saem com fluência e naturais
e quando a Lua se faz rubra como as vinhas,
não encontro em seu rubor qualquer perigo!...