UM FANTASMA DENTRO DE CASA

Por favor, não me leve a mal, mas somente agora me restou um tempo para que eu pudesse lhe contar, como foi o meu fim. Bem sei, você talvez possa achar bastante estranho tudo isso, mas, foi esta a única forma que encontrei para lhe contar, depois de tantos anos, como foi que eu morri. Foi em uma primavera, não sei se você se lembra, pois já faz um bom tempo. O dia havia amanhecido com grandes nuvens, que refletiam com o brilho do sol enquanto flutuavam no céu, como se fossem gigantescos blocos de algodão. Era uma manhã suave, fresca e com um clima muito agradável. Na noite anterior havia chovido e isso dava nos uma sensação de que todas as árvores, juntamente com as outras plantas e flores, houvessem trocado suas folhagens e assim, vestidas com um verde muito bonito e mimoso, brilhavam sobre a luz do sol em um dia muito alegre e feliz. Todas as flores e sem nenhuma exceção, desde as mais raras e de grandes valores, até as outras, muito simples, desvalorizadas nos mercados e por muitos, até mesmo desconhecidas, haviam florido e carregadas com as mais lidas cores e repletas de vida, deixavam esvair suas diferentes fragrâncias suavemente, quando o morno e acariciante vento, vinha lhes tocar. Naquele mesmo dia, eu havia acordado muito feliz e bastante satisfeito, pois assim que abri meus olhos, a primeira lembrança que a mim veio, foi a lembrança de você. Isto mesmo, você, minha querida. Você estava como sempre, muito linda, meiga e com aquele seu sorriso maravilhoso, que por longas datas, só mim fez tão grande bem. E assim, com o pensamento sempre em você, sai pelas ruas a distribuir sorrisos de alegria, até mesmo, aos estranhos que cruzaram o meu caminho. Desconheço algo melhor, que é estar lembrando de você. A carga se torna mais leve e a caminhada muito mais agradável. Assim segui meu destino até que por fim, me encontrei sozinho, em um lugar onde eu pudesse sentir sua presença, mesmo ciente de que você não estaria ao meu lado. E como se em um lindo sonho, as senas de amor, alegrias e felicidades de todo aquele tempo em que vivemos juntos, iam se repetindo, uma após outra, em minha memória, o que me deixava muito satisfeito por saber que você, minha querida, sempre foi a única mulher a quem amei em toda a minha vida. Fui aos pouquinhos me sentindo cada vez melhor, pois o que de bom, houve entre nós, nenhum outro casal chegará a conhecer. O mundo inteiro era somente nosso e desfrutávamos de tudo o que havia de melhor em nossas vidas, pois tudo conspirava a nosso favor, você se lembra? Para mim, eu estava vivendo o augiu da minha vida. Tudo a minha volta fazia me sentir bem. Acredito que minha saúde também estava muito bem, pois aparentemente eu apresentava um bom aspecto e não estava sentido nada. Foi neste momento que pude observar ainda de longe, que um vulto se aproximava de mim. Era um vulto sombrio que caminhava sem nenhuma precipitação, bem calmo, tranquilo e lento. A princípios não me espantei com nada em absoluto. Na medida que aquele vulto de aparência fria, ia se aproximando foi que pude perceber que se tratava, não de um simples vulto, mas de uma mulher muito bonita e elegante que se aproximava cada vez mais, até que por fim me encontrou. Ali ficamos, um olhando para o outro sem nada dizer. Nesse momento ela se apresentou e com um sorriso muito triste e melancólico, disse me que a partir daquele instante, ela seria minha eterna companhia e juntos entraríamos para a eternidade. Eu como se estivesse em transe, me vi totalmente desarmado para enfrentar a qualquer tipo de situação. Foi então que ela se aproximou um pouco mais de mim e deu me um logo beijo. Naquele momento passei a sentir algo nunca experimentado antes. Meu corpo foi se esfriando e tornando se flácido, enquanto um pouco sonolento, aos poucos fui perdendo a noção de tudo o que estava acontecendo comigo. Tive a impressão de que meu corpo foi se desfazendo aos poucos até que por fim percebi que me encontrava sozinho e caído sobre um chão duro e frio. Não me lembro ao certo quanto tempo ali fiquei, talvez por longas horas, não sei ao certo. O de que me recordo, é que estava imóvel e sozinho. Tempos depois observei que se aproximava de mim alguém que eu nunca havia visto antes em vida. Esta pessoa se abaixou e me tocou enquanto perguntava-me o que havia acontecido. Conferiu-me as pulsações e respiração, mas tudo parecia em vão. Chamou por socorro e umas pessoas vestidas de branco, examinou me e constataram que já não havia mais nenhum sinal de vida em mim. Então fui levado por carro fúnebre que seguia sem saber ao certo para onde me levar. Virou por várias ruas e avenidas até que por fim parou. Tiram-me de dentro do carro em alguma coisa que não sei ao certo se era uma maca ou alguma caixa feita de metal. Levaram me para dentro daquela casa estranha e lá começaram a cuidar de mim. Passei a ouvir inúmeras conversas diferentemente umas das outras. Vestiram me um terno que alguém trouxe não sei nem de onde e em seguida colocaram me dentro de uma urna e me enfeitaram com flores que eu nunca havia recebido antes em toda a minha vida. Para mim, aquilo tudo que estava acontecendo, era algo que, ao mesmo tempo que era novidade, era também muito estranho. Eu sempre levei uma vida muito simples e raras as vezes que alguém me dera alguma coisa. Minhas roupas eram todas muito simples e quase sempre as mesmas no meu cotidiano e ali eu me encontrava agora de gravata dentro de um terno novo e bonito. Quanto as flores apesar de eu admira-las muito por sua beleza e encanto, não me lembro de ter recebido nenhuma delas antes. Depois de pronto por assim dizer, após uma demora muito longa, fui levado novamente por aquele carro fúnebre que vagou comigo por mais algumas ruas e praças, como a me mostrar o que eu nunca mais voltaria a ver, até que por fim parou. Parou no velório municipal, onde já havia algumas pessoas a esperar por minha chegada. Quando me tiraram daquele carro colocaram me deitado de costas dentro de minha urna, com as mãos ainda flácidas e cruzadas quase na altura do peito e em cima de dois pedestais. A tampa da urna foi retirada e as pessoas que ali esperavam por mim, foram se achegando uma a uma até que por fim não havia mais nenhum lugar. Muitas pessoas as quais não me lembro mais, chegaram chorando compulsivamente enquanto outras de aparência tristes lamentavam minha falta no meio delas. Houve rezas e queima de velas. Alguns que eu não os viam a tempos, ali também fizeram questão de estar presentes e puderam se reencontrar com outros naquele momento e enquanto conversavam entre si, lhes eram servidos uma xicara de chá ou um cafezinho de cortesia por terem comparecido para me prestarem uma última homenagem. Enquanto do lado de fora tudo aquilo ia acontecendo, eu, ali deitado dentro daquela urna em um repouso profundo, fiquei a me questionar: Posso perceber que hoje, inúmeras pessoas vieram me ver e muitas delas viajaram por longas horas só para me verem partir para o além, mas o que acho muito curioso e não consigo entender é o porquê disso tudo. Vivi uma vida muito simples e comum, mas sempre acreditei que eu fizesse parte da vida dessas pessoas, mas, infelizmente raríssimas foram as que me visitaram e suas visitas muitas vezes eram para falar da vida alheia, nunca para um pequeno momento de alegria e descontração e hoje essas pessoas tolas, vem me ver trazendo me flores, velas e lágrimas. Eu particularmente não necessito de nada disso, pois em vida, nunca foram me visitar, nunca ao menos me ligaram para saberem se eu estava bem ou não, se eu estava necessitando de algo, se eu precisava de alguma ajuda (...). Na verdade, eu já não mais fazia parte da vida dessas pessoas há tempos, pois o que me parecia era que elas não observavam minha presença em meio a elas. Era como se eu fosse invisível aos olhos delas. Ouvia seus comentários sobre supostos passeios, encontros familiares e outros sobres grandes festas que aconteceria não só nas famílias, como também dentro da mesma cidade em que vivíamos. Assim sendo, eu procurava me arrumar dentro das minhas condições, para também participar daqueles acontecimentos, porém, o que acontecia era que sempre se esqueciam de me levarem com eles em suas diversões, muitos preferiam sair sozinhos a ter minha companhia. Dessa forma passei a ser um fantasma em suas vidas. Quanto mais o tempo aí passando eu também caminhava invisível por entre as pessoas, pois eu para eles também era passado e ia sempre sendo deixado para depois, se houver tempo, aí ficando na espera de que alguém pudesse em fim me ver para assim poder conversar um pouco comigo que sempre era deixado para depois, para o final. O que eu imaginava ter feito de bom em prol de cada uma daquelas pessoas, a anos já havia sido esquecido por elas. As noites em que passei em claro cuidando de cada uma delas com zelo, carinho e amor na tentativa de vê-las restabelecidas e novamente saudáveis, de nada foi válido ou obtive seu reconhecimento. O que gastei muitas vezes até sem ter como, para formá-las e ajuda-las a obterem uma boa formação profissional em suas vidas, também foi tudo em vão. Tornei me um fantasma dentro de casa. Minhas forças aos poucos foi se acabando e eu já sem como trabalhar para obter meu próprio sustento, me vi dependente de quem tanto lutei para dar-lhe o que pude para vê-los felizes e realizados em suas vidas e como em agradecimento por todo o meu esforço e dedicação, acabei recebendo o troféu do esquecimento e da invisibilidade. Fui coroado com a ingratidão que recebi de cada um deles. Espero que você me entenda e não veja nisso tudo um momento de desabafo, uma reclamação ou até mesmo uma lamúria, pois apesar de tudo o que me aconteceu, mesmo assim me encontro em paz comigo mesmo, pois bem sei que tudo que fiz foi feito com amor e carinho, sem nunca almejar algo em troca, e mesmo no estado em que me encontro nesse exato momento, não há como eu fazer mais nada, por mais que eu queira. Tudo o que eu imaginei que seria bom para o crescimento de cada um, eu fiz e se o fiz foi com alegria, satisfação e muito prazer, pois o meu objetivo sempre foi vê-los realizados e felizes. Bem sei que você talvez possa achar bastante estranho tudo isso, mas, foi esta a única forma que encontrei para lhe contar, depois de tantos anos, como foi que eu morri.

Senhora do Porto (MG), 21 de agosto de 2021.

Tadeu Lobo
Enviado por Tadeu Lobo em 24/08/2023
Reeditado em 22/10/2023
Código do texto: T7869408
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.