Delicioso adeus

O final se deu antes de começar, essa tragédia é pior que as da Grécia, é nordestina e seca. O que restou no meio das rachaduras de terra marrom é um corpo carnicento, evaporando cheiro podre, velado por moscas varejeiras, sobrevoado pelos urubus sedentos. É cruel, mas aliviante, seu destino será melhor que o tormento lento que é ser comido aos poucos pelas larvas. Descansarás.

Vejo ao longe algum barco navegando, uma luz branca se acende e se apaga no meio da escuridão, observo os coqueiros iluminados, observo a mim mesma e compreendo que meus sentimentos se congelam com uma ternura há muito oprimida, crescida em meios de vendavais constantes, brisas enérgicas, tempestades brutais. O que eu quero sentir, não sinto, o que quero viver, não vivo e nem sei para onde devo ir (ou talvez voltar). Há tantos amanheceres um avassalador afeto me acompanhava, dia após dia minha mente era bombardeada por tuas recordações, teus vislumbres, tua voz soava branda, teus tons abóboras dourados, nosso amor em pura sintonia, ainda assim em estéreo, mas tudo se encaixava de forma tão transcendental que já não era explicável tal sentimento, era além de qualquer coisa que humana, era extremamente espiritual, energia dual e não se sabia como cortar este cordão umbilical de lã multicolorida, muito menos eu queria e tu jamais iria. Talvez o destino, em sua pura conveniência ou por me guiar da forma mais certa, mais amiga, trouxe em minhas mãos algo que me fez entender o meu aperto no peito, meus devaneios, seus veraneios... Hoje canto minha liberdade fora de teus braços, fora de tua guarda, fora de teu amor, das suas invenções, descobri que todas as minhas cogitações eram tão imaginativas, delirantes. Te bordava em meus grandes belos sonhos, te punha em um altar sagrado, junto à Arca [...] tesouro meu. Eu pensava que tomáramos o mesmo vinho servido na nau de Tristão e entendia o nosso amor envenenado, chegamos à morte. Tantas dedicações, tantas poesias, para quê? Tu não existias, te inventei desde o momento que descobri as grutas que abriram em mim. Não há nada tão forte como a verdade e tão forte quanto a mentira. Eu olhava para as cartas, saía a lua, meu coração tremia, eu pensava se era eu ou a ilusão? Eram os dois. Tu conseguiste sambar, ao som das percussões batucadas com as mãos fortes e calejadas, em cima da minha fé, tripudiou minhas crenças, zombou de meu zelo à tuas escrituras. Jogue-me no aterro, cuspa na minha cara, chute meu corpo imóvel e mergulhado em minhas próprias lágrimas, morrendo afogada em meus delírios. Não se preocupe com os gemidos, não se preocupe com os respingos, não se preocupe com a bagunça. Me deixe da mesma forma, você já trilhou por muitas vezes o mesmo caminho.

E quando você voltar com seus arrependimentos, quando chorar de desespero, eu vou rir, pois o desamor é indiferente, mas também é perverso. Eu vou me deliciar em tuas dores, eu vou pisar em teu calçado, eu vou enfiar uma pequena agulha para machucar mais ainda a ferida por puro prazer, por puro escárnio. Sei que nunca encontrará alguém com a mesma devoção que lhe dediquei ao longo de tantos invernos. Pode fechar suas cortinas, você tem meus aplausos.

O altar está vazio, mas eu continuo com o vestido azulado, a coroa com azaleias lilases, lírios, margaridas e flores azuis, a saia rodada com a renda colorida, os pés descalços, sentindo a grama espetá-los; e feliz. Seguindo a minha própria natureza, num caminho estrelado, de areia macia e torrada, com algumas tormentas, algumas chuvas, pois sou água. Provando da liberdade que esperava nunca me alforriar, de uma história tão forte que eu tragava a cada música que lembrava a nós, de cheiros e fragrâncias tão reconhecíveis a quilômetros de distância. E aqui, lhe dou o meu mais decidido adeus, confeccionando meu mais singelo balançar de mãos, para um lado e outro, com as gotas caindo e secando no asfalto negro.

Mas eu vou olhar para trás e ver o sol em rosa, só que eu vou me enganar e perceber que há um espelho retornando toda a luz estampada na escuridão, então eu vou descobrir que eu sempre fui o sol da meia noite.

Lua de Ébano
Enviado por Lua de Ébano em 29/03/2021
Reeditado em 16/02/2023
Código do texto: T7219087
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.