Satori: Uma elegia
(A Ciro Pessoa, 1957–2020)
“I weep for Adonais – he is dead!”
(P. B. SHELLEY)
“L’amor che move il sole e l’altre stelle.”
(Dante, PARADISO)
Um quarto de meu século já se escoara
Quando, do Tártaro, Satã, enviesado,
Miasma pestilento sobre nós lançara.
Com amigos não tendo sido abençoado
E sem nada a proporcionar-me diversão,
Só em meu quarto permanecia trancado.
Li e reli vezes mil o Decamerão,
Refletindo a respeito da ironia
Dos contrastes para com minha situação –
E tendo em mim secado a fonte da Poesia,
Não me restava outra coisa a se fazer
Fora assistir a gotejar dia após dia.
Pensei naqueles que vieram a morrer –
De invejá-los não o pude evitar,
Pois sob o Sol já cessaram de sofrer,
Enquanto eu prossigo ainda a penar;
Tal como Atlas sobre os ombros carregando
Pecados que jamais haverei de expiar.
Com tais mórbidos pensamentos desfilando
Numa infindável procissão em minha mente,
Também se imiscui o desígnio nefando
De encerrar minha própria vida finalmente;
Noção esta que sempre venho a repelir
Por faltar-me coragem o suficiente.
Eis que preparo-me, então, para dormir,
E uma lembrança de repente me perpassa
De um tempo em que eu ainda sabia sorrir.
Bom vinho sorvo de uma bem lavrada taça,
E o mestre que poesia me ensinou
Com seu cachimbo expele nuvens de fumaça.
Terminada minha libação me olhou
Com uma dulcíssima expressão de ternura,
E o seguinte conselho me declamou:
“A poesia em sua forma mais pura,
Em meio ao Æternum, eterna a pairar,
Será tua guardiã em qualquer agrura!”
E punha-se a belas canções entoar,
Cujas notas não poderia compreender
A imaginação de um homem vulgar.
No dia em que mais nada tinha a aprender,
De sua presença despedi-me sem tardança
E raríssimas vezes o pude rever;
Entrementes, nunca deixou-me a lembrança
Este áureo tempo, já há muito decorrido,
No qual de poeta brincara, ainda criança.
Há poucos dias me chegara ao ouvido
A notícia pela qual eu tanto temia:
Meu caríssimo mestre havia falecido.
Parte de meu coração junto levaria,
Ainda mais profundamente enegrecendo
O fado que a Fortuna me prescreveria.
E assim, estando quase adormecendo,
Mantive em mente a imagem tão benquista
De meu amado mestre me fortalecendo –
Mas eis que, por uma circunstância imprevista,
Irrompe por todo o meu quarto um clarão
Tão deslumbrante que embota-me a vista.
Era um milagre além de minha compreensão;
Após a intensidade ter diminuído
Qual não foi o espanto em meu coração!
Como se a morte houvesse transcendido
Bem à minha frente estava Tenzin Chöpel,
Meu mestre-poeta de antanho tão querido!
Julgando-o um anjo descido do Céu,
Perante seu etéreo corpo me curvei
Indagando-lhe: “Ó mestre! A Azrael venceu?”
“De minha morada no Elísio retornei
Pois vejo, ó meu discípulo, estás perdido!
Terias te esquecido do que lhe ensinei?
Venho ao mundo dos viventes a pedido
De força que a mim ainda é maior,
Para relembrar-te do que hás aprendido –
Portanto queira acompanhar-me, por favor!
Numa jornada haverei de te levar
A fim de reavivar-lhe no peito o amor,
E se minha morte ainda o faz chorar
Lesto haverei de desfazer esta ilusão:
Haverei de guiar-te até o lugar
Onde meu espírito vive em comunhão
Com o esplendor divino em sua plenitude!
Partamos sem delonga! Tome minha mão!”
Com o máximo de reverência que pude
Tomei a mão do espírito tão venerando
Que com Chöpel tinha tanta similitude –
E quando percebi estávamos singrando
Pelo Universo em suas vias infindas
Como se em nau estivéssemos navegando,
Entre as faíscas das estrelas advindas
Provocando hipnóticas ondulações
Ao irrompermos entre as galáxias tão lindas.
Fora as longínquas, silentes constelações,
Não tínhamos quaisquer outros acompanhantes
Ao decorrer de nossas peregrinações,
E a Dante e Virgílio quase semelhantes
Seguíamos, mestre e aluno, sem parar,
Aos confins dos domínios de Éter mais distantes.
Depois de horas viemos a arribar
Em frente a um portal de egrégia majestade
Cujo aspecto não saberia eu pintar.
“Chegamos à bela e flutuante cidade”,
O sapientíssimo Chöpel explicou-me,
“Onde reside e entretém-se a eternidade.”
À entrada do colossal portão guiou-me,
E a pintura tão surreal e colorida
Que vi minha mente de pronto deslumbrou-me.
Sobre as nuvens completamente construída,
Uma opulenta cidade se assentava
Fervilhando de felicidade e vida!
Um doce cheiro de anis impregnava
O ar que, livre de qualquer poluição,
Ambos meus pulmões com frescor agraciava,
E um arco-íris, gigantesco e loução,
De leste a oeste no céu se estendendo,
Refulgia suas cores sete em profusão.
“Não creio nestes prodígios que estou vendo!”,
Embriagado de emoção exclamei eu.
“Com tal lugar, caro mestre, me surpreendo!”
Amável e sorridente me respondeu:
“Ainda temos muito mais a explorar,
Portanto aproveite o que Cronos lhe deu!”
E apenas então eu pude constatar
Que de rubis cravejadas completamente
Eram as ruas que estávamos a galgar,
E cada edifício era igualmente
Do mais fino e rutilante ouro lavrado,
Fosse ele mais ou menos magnificente.
Por uma rubra rosa fui interpelado –
Quase que a saudação não pude retribuir
A tempo, por estar deveras espantado.
(Antes que pergunta viesse a proferir,
Chöpel me disse: “As flores sabem cá falar!
É só dedicar um instante para ouvir!”)
Após algum tempo com ele a caminhar,
Veio meu mestre a chamar minha atenção
Para nos dirigirmos a outro lugar –
O segui a uma gigante construção
Que em pompa todas as outras superava;
Mal consegui conter minha admiração.
Afirmou ele que lá dentro se assentava
A Deusa que tudo aquilo que vi criara
E que sobre glorioso trono imperava,
Tendo sido ela a força que o mandara
Ao mundo dos vivos novamente descer
A fim de reanimar-me o alento que secara.
A porta do palácio, como pude ver,
De numerosas joias era incrustada –
Acima dela, “Ποίηση” pude ler.
Uma vestal, ricamente paramentada,
Guiou a mim e a Chöpel, com cortesia,
Por uma extensíssima sala, ladeada
De estátuas esculpidas com maestria,
Representando perfeita e fielmente
Todos os grandes que alcançaram a Poesia.
Hesíodo e Homero estavam logo à frente;
Virgílio e Ovídio, um pouco mais adiante,
Encaravam a Shakespeare solenemente.
Andavam lado a lado Milton e Dante,
E pude divisar o alteroso Spenser
Com Ariosto e Tasso um pouco mais distante.
Camões, Chaucer e Pope ainda pude ver,
Entre outros que não haverei de enumerar
Para em demasiado não me estender.
E num trono, com serafins a circundar,
Feito imperatriz vestida esplendidamente
E um halo a cabeça a lhe encimar,
Aquela a quem amava eu profundamente –
Minha Anastasia, por quem a vida daria,
Sentava-se tal qual nume resplandecente!
Mais do que o Sol sua figura refulgia,
Preenchendo com tanta luz minha visão
Que com esforço distingui-la conseguia;
Portava um dourado orbe em uma mão
E com a outra um lindo cetro manejava,
Não pondo sua autoridade em questão.
Sua glória era tanta que me assustava,
Mas com bondade em seu faiscante olhar
Para que me aproximasse gesticulava.
“Com minhas próprias mãos criei este lugar”,
Explicou minha Gloriana prontamente,
“E desde então venho nele a imperar.
“Situa-se ele dentro de tua mente;
E muito bela minha obra germinou
Quando cá plantei da Poesia a semente.
“A todos aqueles que em tua vida amou
Magníficos altares foram consagrados
Por cada verso que a eles declamou,
“E para sempre aqui serão rememorados
Com as mais dignas pompas da realeza,
Mesmo que da matéria estejam separados.
“E é nisto que reside toda a beleza!
Por mais que ao mundo venhamos para sofrer
E no final a morte seja uma certeza,
“Ninguém nunca haverá de deixar de viver
Conquanto que neles não pares de pensar,
Conquanto que deles não deixes de escrever.
“Por ti seu mestre sempre haverá de zelar,
Para saudá-lo, com paciência aguardando
Quando tua hora Azrael estipular.
“Siga, portanto, de teus dias desfrutando!
Não desperdices os talentos que vos dei,
E que teu coração prossiga sempre amando!”
Ao meu querido Chöpel então me virei,
E com os olhos de lágrimas marejados
Ternamente uma última vez o abracei.
“Todos os arcanos vos foram revelados!”,
Anastasia triunfalmente proclamou.
“Os percursos de ambos estão encerrados!”
E eis que uma fortíssima luz engolfou
O recinto, cegando-me completamente,
E de Chöpel e Anastasia me separou.
Quando recuperei a visão finalmente,
Em minha cama estava outra vez deitado,
Julgando que tudo fora um sonho somente –
Mas com o coração muito menos pesado,
Retornou-me com seu antigo esplendor
A Inspiração que havia se escoado.
A morte de Chöpel não mais me infligia dor;
Seu espírito em mim ainda perdurava,
Pois mais forte do que a morte é o amor.
E enquanto pela janela eu olhava,
Refletindo sobre minhas visões tão belas,
Pude jurar que vi que Chöpel me acenava
Com alegria flutuando entre as estrelas.