Uma trajetória suicída

existe em mim

uma dor que me corrói,

que rasga o peito,

que dilacera com jeito

mas, não dói.

não é aquela dor doída,

aquela dor aguda, intensa;

é uma dor sofrida,

que parece atingir a alma, densa.

existe em mim

um desconforto que atormenta,

que maltrata o meu ser

e me tira a vontade de viver.

uma mistura de vendaval com tormenta.

não faz sangrar feito hemorragia

mas, fere a pele e o coração.

é como estar afogado na solidão,

mesmo acompanhado no dia a dia.

existe em mim

uma angústia que assola por dentro,

que me deixa incertezas,

que devasta a minha beleza

e não há nada que sirva de alento.

algo que parece besteira

mas, de besteira não tem nada.

leva o meu sono, minha madrugada;

murcha as rosas da minha roseira.

existe em mim

uma eterna ideia de desaparecer,

um medo estranho da multidão,

dificuldade de decisão.

não consigo me reconhecer.

procuro a luz e só encontro breu,

sinto a boca ressecada,

não vejo graça em piada.

existe em mim um ser que não sou eu.

existe em mim

um rastro de desilusão,

um caminho à beira do abismo,

nada a ver com ceticismo,

carrego deus em minha versão.

busco graça na lua que risca o céu,

luz no sol em pleno amanhecer.

tudo em vão, volto a padecer.

tudo amaro, não sinto o sabor do mel.

existe em mim

um sorriso banhado de pranto;

um olhar macambúzio, lacrimoso;

um pensamento vil, ardoroso;

um açoite que sucumbe o encanto.

mesmo assim, resisto e sigo em frente.

vou a luta, vou sobrevivendo.

num dia apanho, no outro aprendo,

mas, preciso aceitar que estou doente.

existe em mim

um cara, totalmente, infeliz

e, mesmo que o meu jardim tenha flores,

mesmo que o arco-íris tenha cores,

o meu mundo será sempre gris.

por mais que eu tenha fé,

que eu tenha crença no divino,

desde muito novo, pequenino,

não consigo ficar de pé.

existe em mim

uma lacuna que não é preenchida,

um mergulho num poço profundo,

a sensação de desabar o mundo.

e escorre aquela lágrima sentida.

escuto, então, da boca das pessoas:

"viaja e tudo irá se acabar!"

eu viajo e, quando volto, a dor ainda está lá.

é... a depressão não perdoa!

existe em mim

o desespero da dubiedade.

não saber, exatamente, o que sou...

perdido, sem rumo, prumo, pra onde vou?

voejo no limite tênue da insanidade.

será que existe uma saída?

será que posso supor uma redenção?

quem sabe uma salvação?

talvez uma vereda florida.

existe em mim

um sopro que vem do além,

que me incita tirar a vida

e, que me deixa sem chão, sem guarida.

assim, me sinto o próprio refém.

mas, deixar de viver, jamais!

só quero eliminar a minha dor,

esmorecer este ente sofredor.

quem sabe, assim, encontrar a paz.

existe em mim

a esperança de um dia melhor,

e me foi dito que começa pelo abraço,

pelo amor, carinho, pelo regaço,

a terapia como instrumento maior.

que o toque do medicamento

teria a sua parcela de contribuição,

que todo esse cuidado, essa afeição,

me traria o melhor dos sentimentos.

existe em mim,

nesse exato momento, a certeza

de poder caminhar com meus passos,

de poder reforçar todos os laços,

de família, de amizade e nobreza.

a convicção de que há muito o que fazer,

tantos receios que serão sucumbidos,

tantos monstros que serão destruídos,

tantas histórias que, ainda, terei de dizer.

existe em mim...

Sérgio Murilo
Enviado por Sérgio Murilo em 20/08/2020
Reeditado em 20/08/2020
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