Limiar dos tempos

Limiar dos tempos

“Os coveiros não sepultarão minha história, minha luta”.

Alexandre Santos*

Sem convite e contrafeito, compareço ao funeral.

Festa triste, sem igual.

Com gente, flores e velas,

mas sem luz, perfume ou trelas.

Ouço o pranto sincero das carpideiras de plantão,

que vendem seu choro por qualquer tostão.

[Ouço] a ladainha das beatas sem convicção,

que recitam, sem pensar, sua eterna oração.

[Ouço] o canto inseguro dos fiéis de ocasião.

que cumprem sua tarefa sem denodo ou paixão.

Vejo o sorriso discreto dos ausentes.

[Vejo] o gargalhar aberto dos presentes.

[Vejo] a dedicação cínica dos herdeiros contentes.

[Vejo] os suspiros cortados das viúvas ardentes.

[Vejo] a esperança contida das velhas videntes.

Pairando sobre o caixão,

livre e sem peso ou grilhão,

sinto a chegada de um gozo imortal e,

com um sorriso levado, comemoro aquele estranho carnaval.

A fantasia é escura, sem alegria.

A música, um burburinho sem ritmo ou harmonia.

O sorriso rasgado é de pura agonia.

Damas de negro animam a multidão.

Faces borradas pintam Colombinas

Narizes vermelhos levitam no salão.

Lentes escuras escondem misérias e sinas

Olhos molhados.

Máscaras desfeitas.

Convidados desconhecidos.

Acenos não correspondidos.

Hora de pesar.

Na balança, uma vida.

Na bagagem, uma história ferida.

Na herança, um tesouro vazio.

Na viagem, um novo desafio.

Hora de pensar.

O que fiz? O que não fiz?

Lutei por um mundo melhor.

[Lutei por] por uma humanidade feliz.

Se não consegui, não foi porque não quis.

Hora de rezar.

Entre velas e coroas,

sem confissão ou ação,

o padre me benze e perdoa

abrindo o pesado portão

Hora de partir.

Olhos rápidos cobram a atitude.

Braços fortes erguem o ataúde.

Em todos, músculos e saúde.

Em todas, beleza e virtude.

De longe acompanho o cortejo.

A procissão segue à cova aberta;

O sorriso fúnebre que engole o corpo.

O caminho que leva às entranhas repletas.

Essa jornada chegou ao fim.

A cada pá de cal, me despeço de mim.

De repente, o infinito surge reluzente.

Silencioso convite que aceito imediatamente.

Ávido para desvendar novos sabores e mistérios,

sem limites, freios ou critérios,

mergulho no turbilhão de luz,

um brilho que afaga, morde e seduz.

Mesmo assim, vou contrafeito.

Levo saudades da mesa e do leito.

[Levo] inveja de quem fica,

um sopro de sonho que não se explica.

(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Escritores