MANSUETO
MANSUETO
--” Quem anda desde a aurora já enlutado?
Quem é esse senhor todo de preto
Que caminha p'lo campo neblinado?
Quem, tão ensimesmado e circunspeto,
Vagando insone em meio ao insone gado?”
--’” Herdeiro de Gonçalves indireto
E neto primogênito, portanto,
Aquele é o Senhor de Monte-Santo!’”
-- “Sim, mas, por que anda em trajes de velório
De capa preta sobre o preto fato?
Como homem tão esplêndido e notório
Chafurda as suas botas n’um regato?”
--”’ Avança, resoluto, ao promontório
Para ecoar pelo abismo o grito ingrato
Onde ondas em perpétua sinfonia
Façam coro à sua íntima agonia.’”
-- “Ouvi! Verte ganidos sobre o Atlântico
O rico herdeiro de alma miserável.
Decerto s’entretem como romântico
Ou actor a declamar do praticável...”
--”’ Não! D’um celerado o triste cântico
S’espalha em desespero formidável!...
Lamenta ele uma perda mui sentida,
Que em vão lamentará por toda a vida...! ’”
-- “Não soube de enterrar sua consorte
Tampouco de moléstia na família...
Ignoro haver mal que desconforte
A quem tanto Fortuna há tanto brilha
Decerto, para tal, levou-lhe a morte
A sua muito amada única filha...”
--”’ Enganai-vos, pranteia ele uma prima
Por quem desenvolveu estranha estima...”
-- “Valha-me Deus! Que absurdo, ó temerário!...
Que cousas conheceis que desconheço?
-- ”’Não essas conversinhas de ordinário
Que o povo conta a frente pelo avesso,
Mas sim o que se pensa solitário
E s’executa às ocultas mais expresso:
Ardendo de paixão por uma virgem,
Perdeu-se enlouquecido de vertigem.’”
-- “Que escuto?! Nosso jovem mais brilhante
Assassino de moça em sua casa?! ”
-- ’”Deveras, surpreendi-o claudicante
Depois d’ele enterrá-la em cova rasa!...
Em choque, nada havia em seu semblante
A não ser seus dois olhos ‘inda em brasa.
Chamei sua família -- que o cuidou --
E a bela com exéquias s’enterrou... ”’
”’Desde então ele vaga noite afora
Até topar com tal desfiladeiro
Do mesmo modo como ao enterro fora
Recoberto de preto o corpo inteiro...
Sua triste figura me apavora
Tanto quanto o malfeito derradeiro
Àquela moça que ele tanto amara
E que, ao negar seu corpo, a molestara.’”
-- “Monstro! Inumano! Estúpido! Canalha!
Eu mesmo hei-de matá-lo com as mãos!...
Como fugira à forca? Que gentalha!
Que família s’esconde entre os irmãos?!...
Uma camisa de seda por mortalha
Suja de sangue e lama d’estes chãos...”
--’” Vamos ter co’o fidalgo, como julgais,
A fim-de que ele pague com seus ais!...”’
”’Sim, Gonçalves Terceiro: o Mansueto,
Aquele de quem fora bom amigo,
Tanto na boêmia quanto no escudeto.
Todavia, testemunha do perigo
De cujo crime ouvira o atroz dueto,
Deixando meio-morta sem abrigo
A amada que jamais se quis amante
E morrera em seus braços suplicante. ”’
-- “Embora légua e meia a caminhada,
D’ali, cercada a terra, só há mar!
Não há fuga senão jogar-se ao nada,
Pulando sobre as ondas a espumar.
Ajudai o suicida na empreitada
De pelo abismo extremo se matar!”
--”’ Certamente, caríssimo, eu irei
E aceito, se assim for, a dura lei.”’
Assim juramentados homicidas,
Partiram dois senhores respeitados
Sob pena de perderem suas vidas,
Se, em face do malfeito, condenados...
Justiça mais vingança divididas
Nas mentes de homens tão civilizados
Fizeram escurecido o claro dia
No instante em que a neblina se perdia.
O alto d’onde avistaram o fidalgo
Era estrada deserta n’aquela hora.
Não houve caçador, tampouco galgo
A perseguir as lebres campo afora
Não houve ali vadio em busca d’algo
Ou rebanhos descendo sem demora.
Não houve mais viv’alma pela estrada
Enquanto os dois cumpriam a jornada.
Os dois, já pressurosos e silentes,
Sabiam que impossível de escapar
Do poder ancestral d’aquelas gentes
Há muito acostumadas a mandar.
Além das fidalguias indiferentes
Às leis e autoridades do lugar.
Sabiam que seriam descobertos
Embora seus motivos fossem certos.
Sabiam que o sujeito que buscavam
Era, d’entre os maiores, o melhor:
Um finório que tantos adulavam
Pois em Coimbra esplêndido doutor
E viajado a países que sonhavam
D’aquela sociedade a fina flor...
Sabiam que aquele era um intocável,
Muito embora o seu crime detestável...
Sabiam que ele tinha esposa e filha
E, sobretudo, o fiel depositário
Das grandes esperanças da família...
Entrementes o sangue hereditário
Lavava aquele sangue peralvilha
Da moça cujo mal involuntário
Foi ser bela demais para viver
Cerca ao primo que a quis como mulher.
Chegando ao promontório finalmente
Encontram junto à borda Mansueto...
Parecia tão parvo que demente,
Vindo do funeral, todo de preto.
Vendo que não virava ele de frente
Vão lhe tacando pedras mais graveto
Até que o celerado lhes encara,
Mostrando o animal que se tornara.
--”’ Maldito seja!”’ -- grita o antigo amigo
Mansueto, assoberbado, por fim diz:
-- ‘Que fazes aqui, cão!? Que tens comigo?’
-- “Viemos te ver morrer, grande infeliz!
O amplo oceano te sirva de jazigo!...” --
Mansueto, porém -- ‘O que que eu fiz!?...’ --
E buscando razão sem saber onde,
Inopinadamente ele responde:
-- ‘Sabei-me tão-somente um amador
Que amou a sua bela mais que vida!
Se viestes me matar, é um favor
Que fazeis a esta besta combalida...
Todavia, o que fiz foi por amor
Que ela me desdenhou, desfalecida.
-- “Vinde! Temos punhais para um duelo...
Eis que a morte escutou o vosso apelo!”
-- ‘Já faz horas eu duelo com a morte,
À beira d’este abismo tão profundo!
Não lamento, afinal, a minha sorte
Se por ganhar o amor perdi o mundo.
Eu tive a minha bela por consorte
‘Inda que n’um enlace moribundo:
Entregue totalmente a meus abraços
Eu ofegava, arfante, nos seus braços’...
‘Ela implorava: “Mata-me d’amor!”
E então, enamorado, a fiz morrer.'
-- “Celerado! Implorava de pavor,
Sabendo com certeza perecer...
-- '"Quão sem limites vive esse senhor
Que a vida d'uma bela fez perder?...
Mansueto... Talvez, manso pelo nome,
Mas um monstro voraz em sua fome...!"
Dito isso, ouviu-se um grito lancinante
E um corpo a despencar sobre o mar frio.
O povo os encontrou n'aquele instante
Ao ver o cabo extremo mais sombrio
E foram testemunhas, no flagrante,
Do salto do fidalgo no vazio
E assim pereceu sem outro tanto
Mansueto, o Senhor de Monte-Santo.
Betim - 01 04 2020