Rainer Maria Rilke e a morte

Ela é sumo e perfume na folhagem

é relâmpago

e açúcar

na polpa fendida

e em todo o bosque

é rumor verde que de copa em copa se propaga

entre estalos e chilreios

a morte

presença e ocultação

circula luminosa

dentro dos caules

e se estende em ramos

abre-se em cores

nas flores nos

insetos (veja

este verde metálico este

azul de metileno) e inspira

o mover mecânico

dos mínimos robôs

da floresta

E ele a ouvia desatento

no próprio corpo

voz contraditória

que vertiginosamente o arrasta através da água

até o fundo da cisterna e

no intenso silêncio

Pensou ver-lhe num susto

o rosto

que se desfez no líquido espelho

(era aquele

o rosto da morte?)

De fato o entrevira ali no

tanque do jardim?

Suspeita que era dela já aquele

olho que o espiava

do cálice da açucena ou a abelha que zumbia

enfiada na corola a sujar-se de

dourado. Ou vida seria?

Nada mais vida (e morte) que esse zunir de luz solar e pólem

na manhã

Era de certo ela, o lampejo

naqueles olhos de um cão

numa pousada em Wursburg.

Mas a morte (a sua) pensava-a como

o clarão lunar

sobre a cordilheira da noite

na radiante solidão

mãe do poema

Sentia-a contornar-lhe o sorriso

esplender-lhe

na boca

pois convive com sua alegria

nesta tarde banal

Sabe que somente os cães ouvem-lhe

o estridente grito

e tentam quem sabe avisá-lo.

Mas adiantaria? Evitaria ferir-se no espinho?

Na verdade

era a morte (não brisa

que aquela tarde

moveus os ramos da roseira)

O futuro não está fora de nós

mas dentro

como a morte

que só nos vem ao encontro

depois de amadurecida

em nosso coração.

E no entanto

ainda que unicamente nossa

assusta-nos.

Por isso finge que não a pressente,

que não a adivinha nos pequenos ruídos

e diz a si mesmo que aquele grito que ouviu

ainda não era ela

terá sido talvez a voz de algum pássaro

novo no bosque

A verdade, porém, é que a mão inflama

todo ele

queima em febre

Que se passa? Está incômodo em seu próprio corpo

este corpo em que sempre

coube como numa luva

macio, e afável, tão próprio que jamais poderia imaginar-se noutro.

E agora o estranha. Olha-se

no espelho: sim são seus

estes olhos azuis,

o olhar porém

esconde algo, talvez

um medo novo. Mira

as mãos de longos dedos: são suas

estas mãos, as unhas, reconhece-as, mas

já não está nelas como antes.

Com estas mãos tocava o mundo

na sua pele

decifrou-se o frescor da água, a veludez

do musgo como

com estes olhos conheceu

a vertigem dos céus matinais

neste corpo

o mar e as ventanias vindas

dos confins do espaço ressoavam

e os inumeráveis barulhos da existência: era ele seu corpo

que agora

ao mundo se fecha

infectado de um sono

que pouco a pouco o anestesia

e anula.

Como sentir de novo na boca (no caldo

da laranja)

o alarido do sol tropical?

Se meu corpo sou eu

como distinguir entre meu corpo e eu?

Quem ouviu por mim

o jorro da carranca

a dizer sempre a mesma água clara?

Agora, porém, este corpo é como uma roupa de fogo

que o veste

e o fecha

aos apelos do dia

Com fastio

vê o pássaro pousar no ramo em frente

já não é alegria

o sopro da tarde em seu rosto

na varanda.

Alguma coisa ocorre

que nada tem a ver com o nascer do poema

quando ainda sussurro sob a pele

prometendo a maravilha

(abafado clamor de vozes

ainda por se ouvir

a girar nas flores

e nas constelações)

Alguma coisa ocorre

e se traduz em febre

e faz

a vida ruim

É desagradável estar ali

num corpo doente

que queima

de um fogo enfermo

que cala o mundo

e turva-lhe

o esplendente olhar.

Que se passa afinal?

Será isto

morrer?

Terá sido um aviso

o uivo que ouviu

naquela noite prateada em Ullsgraad.

Assim se acaba um homem

que sem resposta iluminou

o indecifrável processo da vida.

e em cuja carne sabores e rumores se convertiam

em fala, clarão vocabular,

a acessibilidade do indizivel.

E quem dirá

por ele

o que jamais sem ele será dito

e jamais se saberá?

Verdade é que cada um morre sua própria morte

que é única porque

feita do que cada um viveu

e tem os mesmos olhos azuis

que ele

se azuis os teve;

única

porque tudo o que acontece

acontece uma única vez

uma vez

que

infinita é a tessitura

do real: nunca os mesmos cheiros os mesmos

sons os mesmos tons as mesmas

conversas ouvidas no quarto ao lado

nunca

serão as mesmas a diferentes ouvidos

a diferentes vidas

vividas até o momento em que as vozes foram ouvidas ou

o cheiro da fruta se desatou na sala; infinita

é a mistura de carne e delírio

que somos e

por isso

ao morrermos

não perdemos todos as mesmas

coisas já que

não possuimos todos a mesma

quantidade de sol na pele a mesma vertigem na alma

a mesma necessidade de amor

e permanência

E quando enfim se apagar

no curso dos fenômenos este pulsar de vida

quando enfim deixar

de existir

este que se chamou Rainer Maria Rilke

desfeito o corpo em que surgira

e que era ele, Rilke,

desfeita a garganta e a mão e a mente

findo aquele que

de modo próprio

dizia a vida

resta-nos buscá-lo nos poemas

onde nossa leitura

de algum modo

acenderá outra vez sua voz

porque

desde aquele amanhecer em Muzot

quando ao lado do dr.Hammerli

subitamente seu olhar se congelou

iniciou-se o caminho ao revés

em direção à desordem

Hoje, tanto tempo depois

quando não é mais possível encontrá-lo

em nenhuma parte

- nem mesmo no áspero chão de Rarogne

onde o enterraram -

melhor é imaginar

se vemos uma rosa

que o nada em que se convertera

pode ser agora, ali, contraditoriamente,

para nosso consolo,

um sono,

ainda que o sono de ninguém sob aquelas muitas pálpebras

Ferreira Gullar
Enviado por HenriqueBazzí em 01/03/2018
Código do texto: T6267338
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