Hoje a pureza morreu

E ontem

E há quinze anos atrás

E há vinte

E a 200 anos atrás

E a 500

E há 2000

E a 5000 anos atrás

...

E continuará a morrer

Ou a ser morta

Pelos infortúnios da vida

Pela gula da morte

Pela luxúria da ignorância ou da estupidez

Pela pureza de quem só sabia sorrir

De ser feliz

Que se contentava com o pouquinho

E que o pouquinho, nas mãos da criança

Tornava um montão, na simplicidade

Na eterna mocidade

De quem esquecia, que a morte está em todo lugar

À espreita

À espera

Do primeiro erro mortal

Da primeira conjugação, de má sorte

Do primeiro caos ou desencontro

A vida é rara, a existência é cheia de morte

A vida é um brilho fraco

Um fósforo aceso lutando contra o frio

A vida é frágil, está sempre a um pavio

E a pureza é ainda mais vida, de cristal

A confundir-se, que vive um sonho

Hoje de manhã uma purezinha morreu

Os seus olhinhos se apagaram pra sempre

Sua breve vidinha cessou

Sua felicidade, eterna, enquanto durou

Seu pequeno rabinho não mais balançou

Seu amor infinito, não mais brilhou

Seu peludo corpinho, não mais pulou

Sua pequena janelinha, sempre ensolarada, se fechou

Numa manhã nublada, no meio ao asfalto, à brutalidade humana

À frieza do chão

Sua pequena alma, se foi

Pra onde não se sabe

Espera-se que, seu sonho, tenha se tornado verdade

Espera-se que, quando morrermos, Deus terá piedade, o que quer que seja,

Será justo, perdoando a todos, culpando a si mesmo,

Mais espinhos, mais pregos, que em cada desgraça, a sua pele arda

Hoje uma pureza morreu

Impurezas também se vão

Mas quando um solzinho se consome, os sentimentos corrompem, sem saber como sentir, se é a revolta ou a tristeza, se apontam os dedos, ou se oferece o colo, mais porquês, com ou sem respostas, respondemos as mais físicas, literais, deixamos em teorias e hipóteses, o que não se pode pensar, do outro lado, sem ser vida, e o que será,

Quem não tem fé prescrita, reza em lamentos,

Chora por dentro,

E difícil ter luto, por quem não preencheu a memória, é mais forçado do que natural, mais perplexo, sem ação, do que em prantos,

Mais desconexo da perda, ainda assim, busca ser discreto, mesmo quando os sentimentos não são sinceros,

Força porque é o certo,

Não chora, não relembra, não pensa na vida, como se fosse parte de si,

Ainda que tenha sido,

Se toda a vida é irmã,

Se somos filhos de sua loucura,

De seus porquês, de seus instintos, de suas correntes,

Se estamos todos acorrentados, se não temos escolha,

Hoje uma purezinha morreu,

E a minha tristeza,

tímida, forçosa, querida, desejada, mas fraca,

Matou parte de mim, e se foi com ela,

Em cada assombro, da própria fragilidade,

Sobre o irmão ou a irmã, que se foi,

Morremos um pouco, sem saber, mesmo sem querer,

Mesmo quando lutamos, mesmo quando rimos ou desprezamos,

Aceitamos ou tentamos nos enganar,

Quando a morte não é humana,

Mas é morte, e foi vida,

Primos distantes, desta grande família,

Desta irmandade vital,

E nós,

Como os primeiros a despertar,

Mais sentimos, por ressentirmos, por chorarmos não uma, mas duas, três, muitas vezes se for preciso, ou se vier pelo instinto,

Hoje a pureza morreu,

E ontem,

e noutro país,

e noutra calçada,

e noutra jornada,

e noutra memória...