Lâmina
A lâmina que entra suave na carne,
Rasgando a pele que cobre esse saco putre
de deficiências
E reminiscências de um passado promissor
Transformado nesse asco e seu pudor
Que ora escreve esse péssimo poema
Separa da alma a dor dos nervos fracos
E liberta na ardência desses órgãos
O ódio vil que sinto de mim mesmo
O sangue quente que anestesia a ferida
E escorre líquido liquidando a vida
Não deixa de trazer certo torpor
Prazer por se saber findar a dor
E ter, ao menos uma vez, cumprida
A empreita iniciada e tão bem feita
A consciência que, demente, sonha
Prepara já as cenas do pós-morte
E a incerteza se apresenta, risonha
A zombar do moribundo à própria sorte
E eu fito a cena, os pulsos evanescidos
E temo ser achado ainda vivo
Por quem diz me amar mas que me nega
O direito mais vital - ceder o espírito
E penso, vão chorar o meu valor
Ou vão urinar sobre minha lápide
Mas, seja isso como for
Haverá na terra um espaço em que me encaixe
E o erro será, por fim, solvido
E o mundo seguirá seu caos supremo
E o tempo findará para este lixo
E o breu, o limbo, o inferno ou o abismo
Me acolherá com lágrima ou sorriso
A terra converterá este corpo feio
Em adubo para o frágil, belo hibisco
E o povo seguirá cortejo alegre
Alheio a esta desgraça em que ainda insisto
As festas, o luto, e o universo
Num universo em que já não existo