METAMORFOSE

Não. Não é a Metamorfose de Kafka.

Mas é uma metamorfose. Pior.

O sonho fez-se pesadelo.

Meu rosto desfez-se ante as brumas da noite.

Na tumba tão fria, a beleza se foi...

Mas o jazigo pesado não pôde deter

Aquela que, morta, não se deixa morrer.

O odor da morte já exala de mim.

Meus dedos frios, descarnados estão,

E as unhas cresceram, cravando-me as mãos.

Cabelos tão brancos... cresceram também!

Ralos, escassos... todos brancos estão.

Meu corpo, dos vermes, corroído está,

Como minh’alma, da mágoa, estará....

Eu fui linda, bondosa, coração delirante,

Sonhava, feliz, ser a eterna amante,

Daquele que um dia me fez coração

E desejo e poesia em imensa paixão...

Até o dia ou à noite, em que aquela maldita

Chegou até mim, ofendeu-me, bateu-me,

Marcou-me no corpo e no meu coração!

Se ela o amara, o amara em vão,

Pois havia “matado o seu coração”

Até o dia em que “ele” me conheceu...

E sem se dar conta, ligou-se a mim

Que nada sabia de um passado e de um fim;

Vivemos o “agora”, jamais perguntamos

De onde viemos e para onde vamos

E entre nós o amor floresceu...

Até o dia maldito em que apareceu...

Perseguiu-me, humilhou-me, bateu-me no rosto,

Não reagi (surpresa fiquei!)

Do sangue eu sentia na boca o gosto...

– Jamais pegaria o que não era meu...

Afastei-me. Mas “ele”, em fremente emoção,

Procurou-me e uma história amarga contou,

De um amor muito antigo que um dia acabou...

Mas ela, terrível, vingativa, cruel,

Havia jurado debaixo do céu

Jamais permitir-lhe amar outra vez...

Com ela sofreu, mas a ela esqueceu...

E um dia, ao acaso, “ele” me conheceu...

Esquecido o passado, amou-me! E quanto!

E eu, sem saber, amei-o ... e tanto!!

O dia chegou: na cama deitados

Conversando abraçados, como dois namorados,

Na sua maldade, ela nos encontrou!

Não vinha sozinha, vieram com ela,

Cinco homens armados... que ódio vi nela!

Dois o agarraram e dois me prenderam

E o terceiro, maldito, a fio de navalha

Cortou a garganta do homem que amei

A cabeça rolou... e eu desmaiei!

Quando acordei o lugar era escuro

Pegajoso, fétido; apertado e duro:

Eu estava enterrada... mas viva!! Que horror!!

Pelo rosto escorria um frio suor

E meu corpo tremia no escuro, sem luz...

Tinha algo gelado encostado em mim;

Tateei com a mão e “vi-o” assim

Não com os olhos , mas com meu coração:

“Ele” jazia na tumba enterrado comigo!!

Ela nos dera o mais cruel dos castigos...

Por uma fenda entrava mui fraca,

Mui débil, pequena, uma fresta de luz...

O pouquinho de ar me faria viver,

Mas morta em vida, apodrecer,

Com meu amado, morto, ao meu lado!

Seria um suplício mui lento, pesado!

Gritei! Gritei alto! Mas ninguém ouviu...

O tempo passando, em tormentos penando

O frio da morte eu queria sentir

Mas... amaldiçoada por vingança cruel

Minha morte foi lenta, terrível, foi fel...

Passou-se algum tempo, se morta ou viva

Fiquei, não sabia, perdi o sentido

De dor, de fome, de sede, de ar...

Maior sofrimento, porém, era amar,

Aquele, ao meu lado, que a morte desfaz...

O corpo que amei, em decomposição...

Horas, dias, meses, anos?... Não sei...

Num bicho horroroso eu me transformei...

E, numa noite, quem sabe, de lua,

Uma força cruenta me veio da rua

E a tampa da laje, enfim, levantei...

Era uma noite escura... e horrenda,

E a catacumba perdida era lenda

Que no silêncio fazia oferenda

Pra alguma coisa, que ainda não sei...

Meu corpo, volátil, sutil esvoaça...

Sou leve, sem ter nem ao menos mortalha

Pelo Campo Santo, perdida, vaguei...

E para a cidade maldita, rumei...

Eu ia encontrá-la, eu ia, eu ia!...

Numa casa adornada, então, eu entrei

Uma força impelia; não podia lutar,

E vi sobre a cama um vulto: mulher

Um corpo bonito, um corpo torneado,

Dormia tranqüilo e agasalhado,

Na cama onde, outrora, eu muito amei!...

Cheguei ante ela, meu vulto baixei,

E voltei apressada ao túmulo aberto,

A cabeça, ou o que fora, com carinho, tomei

E fui para a casa onde um dia eu morara.

E entrei no quarto: ela ainda deitada...

Deitei-me ao seu lado, a cabeça do amado,

Que era um pedaço de carne disforme,

que eu docemente havia levado,

entre nos duas, deitadas, deixei!

Deitei-me ao seu lago, ou melhor, levitei...

Ela ainda era bela, dormia mui loura,

Meio sorrindo, talvez inda zombando

Entre sonhos de doida, talvez já pensando

De como eu estaria: o que eu ainda penei!...

E, no sonho, ela ria em perfeita ironia

(Pois no sonho dela eu também penetrei...)

Por vê-la tão bela, eu me desmanchei

Em choro convulso nos olhos sem vida...

Mas ela acordou, talvez com gemidos

Vindos de mim... para onde iriam, não sei...

Acendeu a luz: deu um grito de horror!

E eu, em tristeza, apenas chorei...

Tapou o nariz! Um vômito escuro

Saiu-lhe da boca aos borbotões...

Do meu amor a cabeça disforme,

fétida imagem, mas que eu inda amava

Parecia sorrir do que foram seus lábios...

Quando ela me viu, ou o que viu que era eu,

Gritou, assustada, seus capangas a vir!

Pegou uma adaga e apontou para mim...

Eu quieta estava e quieta fiquei.

Golpeou-me no ar, mas eu nada sentia,

Imóvel e muda... E não reagia!

Tentou, com um golpe, acertar meu amado,

Mas tropeçou, em seu tresloucado

Gesto de ira e de grande furor.

E cai sobre a cama, a adaga lhe crava

Ao meio do peito, em seu coração!

Esguicha sangue! A vida se esvai.

E ela caída na cama diz: – Ai!!...

E uma sombra do inferno aparece e lhe diz:

– Vem porque és minha! Tua alma comprei!...

Do corpo uma névoa escura se solta

E vai com o demônio! E ela fica, ali morta,

Afogada no sangue que dela saiu.

Eu sinto umas luzes pequenas, brilhantes,

Bem perto do mim: fiquei como dantes!

Não era um farrapo humano, não mais!

Na luz, “ele” estava! – Eu vim te buscar!...

Um beijo selou nosso amor, ao luar...

Muito leve ficamos, e abraçados, voltamos

A ser belos e jovens num lindo lugar ...

–Nada, amor, vai nos separar!...

E as luzinhas voltaram! Formoso lugar!...

Na mesma manhã, um coveiro assustado

Gritava: – Um túmulo foi violado!

E havia dois corpos!! Mas um desses corpos

Está sem cabeça! Não se enterram os mortos

Juntos, no mesmo jazigo a ficar...

(Que, abandonado, era um túmulo antigo,

De alguém muito antigo naquele lugar!)

Na mesma manhã, uma dama é encontrada

Ao lado da cama. É assassinada

Ou suicídio terrível conseguiu consumar?!

E o mais estranho: no meio da cama

Cabeça disforme, arrancada do corpo,

Já meio desfeita, a putrefar;

A cabeça de um homem, que um dia foi morto,

Degolado... – Como aí teria ido parar?... –

Parecia sorrir, em estranho esgar...

E dizem que hoje, nas noites de lua,

Os jovens amantes escutam na rua

Palavras de amor na casa assombrada...

E que pelas bandas do cemitério,

Se ouve gemidos e uma triste risada...

Quem são? Ninguém sabe: é tudo mistério!!...

..........................11 mar 2008..............................

ESPERANÇA
Enviado por ESPERANÇA em 12/03/2008
Reeditado em 11/06/2008
Código do texto: T898569
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