"Pega a peteca, Ana! Bora jogar?" - Ah, o horizonte sob a vista da janela da ala psiquiátrica.

Soava como recreio, mas com cheiro de cloro e luto.

A ala psiquiátrica era um campo de férias com rodízio de delírios.

Entre a horta comunitária e o crochê do ex-presidiário,

que bordava um tapete onde eu secava o medo com os pés.

"Naquela poça de água eu vi o reflexo de papai."

E eu, que só queria ver reflexo de algo que me limpasse.

"Ô doutor, vi água na água. Isso não é evolução?"

Ria ele, e eu ria também, com a boca.

A máscara de sanidade: feita à mão, costurada com pânico e disfarce.

A consulta era palco. Eu, atriz de mim.

"Olho pro espelho e vejo o que me tornei."

Mas não digo o que vi ontem na parede do quarto:

vozes dançando com os quadros,

o teto sussurrando meus fracassos.

"Sabe, que bobeira pensar em me matar",

e ele já anotava menos miligramas e menos sessões a fim de me tratar,

como se minha melhora estivesse em ideações higienizar

Até que um tropeço me entregou de corpo e alma:

"Quando eu puder viver e presidente me tornar!"

A megalomania, essa ex-namorada volúvel, voltou com batom borrado a afirmar:

"Você acredita que um dia irá se tornar?"

"Não, doutor. Eu já sou. Presidente da psiquiatria, meu novo amado lar.

E nem precisei me eleger, só ser. Quem aqui é mais louca? Eu ou você?"

E nesse trono que estragguei o que restava do acolchoado, eu vi:

o que é um lar senão o lugar onde posso livremente falhar?

Tenho quem me sedava e quem me ouvia cantar.

Incontáveis cigarros no pátio. Visitas que aqui me acham mais real

do que no sofá da sala, lavando louça com o choro.

A horta floresce onde minha cabeça não vence o murchar

Por que sair? Só porque a Liberdade insiste em esperança locomotiva cantar e desafinar?

Lá fora esquecem de mim e eu esqueço dos medicamentos tomar.

Aqui dentro... eu lembro. Ou melhor, tem sempre alguém a eles me empurrar.

Lembro dos reflexos. Do tapete. Da peteca.

E que, no fundo, todo mundo só quer um lugar

onde possa, sem culpa, continuar

a delirar. Sem medo de como louca insistirem em taxar.

A liberdade em ser enjaulada na ala psiquiátrica

É um sonho comum a todos que a neurodivergência decidiu abraçar

Pena que nenhum louco disso sabe e continuam a brigar

Por meda da internação, mas mal sabem que tem peteca, uno e cancão de ninar

A liberdade canta nos comprimidos que tendem a amenizar

A tal verborragia, a tal frustração que finda em tentar se matar

Se corto os pulsos, sei que em breve voltarei ao meu lugar

À pretérita e hodierna ala psiquiátrica que já não intenta me enjaular

Percebo por fim que muitas vezes me internaram com o intento de mim me salvar

Observo minha dificuldade em a verdadeira realidade conseguir enxergar

Quando não me encontro equilibrada e quando penso em minha vida findar

É só mais um dia de insanidade, o mundo lá fora ainda é um bom lugar...