SONHO SUBTERRÂNEO
“O mineiro subterrâneo que trabalha em todos nós,
como poderá alguém dizer aonde leva seu poço de entrada,
pelo som abafado e sempre mutável de sua picareta?”
H. Melville
H. Melville
Num meio dia de fim tive um sonho.
Vi uma mala cheia de esperanças sonháveis
vagueando a minha volta.
Vinham como os meus versos,
próximas de abandonarem a mala
e adentrarem o meu íntimo.
Tinham fugido dos livros
e diziam ter passeado por um muro que Caeiro não pulou.
E rodeavam-me, prestes a de vez invadirem-me a alma
– o espaço sem cercados do meu súbito interior,
meus versos permanecentes.
Entrando por minha janela se alojaram num fundo de mina do meu ser.
Dormiriam em mim, como os artífices desqualificados da metrópole
– os anônimos, UDR(mente) expulsos da terra-mãe
por caiados de gravata, que jamais alcançarão um sentimento Caeiro.
Soltariam em meus lençóis o suor que sustentava
a loucura citadina do meu ócio enganador.
Mas eu não ia acolhê-los do lado de dentro de minha janela sem saída.
Um dia em que eu não conseguia dormir
noite alta pus-me a fuçar a mala...
Sem querer achei um fundo falso, de onde retirei
uma caixa dos milagres,
o que possibilitou-me apropriar-me de três deles.
Com o primeiro fiz com que nenhum leitor jamais percebesse
que eu não sou poeta de verdade.
Com o segundo voltei a ser menino
acumuladas todas as descobertas de minha idade real.
Com o terceiro transcriei-me em poeta
amigo do menino.
Depois saí sob o sol
levando-o com seu chapéu de criança crescida.
Hoje ele vive comigo em meu apê.
É um garoto travesso, cheio de peraltagens.
Costuma deletar meus melhores versos
quando eu estou distraído.
Sai a passear até tarde,
passa noites fora,
traz mulheres para nossa cama
– às vezes outros meninos...!
Outro dia trouxe uma ninfeta
E, com versos de Garcia Lorca, entregou-a para mim
– linda e com ar de apaixonada pela minha pessoa.
Êta, menino!
Ensina-me tudo,
chega até a apontar-me os versos "que tu deve de escrever" – copiar.
Diz-me muito mal de mim.
Que eu vou ser um velho estúpido e doente como a indústria da fé
– sempre a escarrar no chão
e a digitar indecências.
Diz-me que eu não crio nada daquilo que escrevo,
que os meus versos, quando não são cópia dos livros,
na verdade são criação dele;
e os seres por mim inventados não são seres
porque não existem como os seres existentes,
mas apenas estão, como os estados
– os meus pululantes estados de alma.
Aí lembra meu corpo, e afinal adormecemos.
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Ele é uma eterna criança, uma espécie de humano em paz;
um divino que sorri, sem cifrão e sem mistério;
imagem de um barro antigo
– anterior ao menino Jesus de Vandin, em seu "Vôo de Galinha"
(muito anterior, aliás, ao próprio sentido de anterioridade).
Tal é a criança que me dá as mãos
e esperança com rimas e pés.
Os meus dedos sobre as teclas
é seu dedo apontando pra minha poesia sem paz;
sem primórdios nem utopia – herança do amo Logos.
Vivemos os dois assim, como dextera et sinistra
da pulchra puella Marcenda
– a rosa ricardiana de manus a Saramago.
A mala dos meus pensamentos mantém em mim os meus versos.
Penso em mandá-los para a aldeia, ao vento,
ainda que raquíticos e órfãos de um verdadeiro pastor.
Mas sem largarem em rebanho, ainda cavam-me a mina;
assistem eu e o menino ao anoitecer, brincando as cinco pedrinhas.
Nos degraus que levam à porta da mina, cá estamos nós a brincar
– graves como convém a um menino e a um leitor de Caeiro.
E eis que largam os meus versos,
mas como rebanhos desgarrados que o poeta não guardou.
Vão em direção ao mundo, a aldeota galáctica que escapa aos meus sentidos.
Macros-Brasis, please!
Com um tear de má retórica
vou tecendo a poesia indiferente,
que finge e sonha em segredo.
– o falso frio do meu tecido
não desaquece o embate:
há de resistir o artífice aos abraços do arame,
até desatar o nó do telúrico certame.
Estou a contar histórias dos homens ao menino
e ele sorri, porque tudo é muito incrível.
Ri dos donos e dos domados
porque ele sabe que tudo isto falta à leniência que a poesia de verdade pode dar,
que o sol deste tecido só faz refletir o escuro
dos caiados e altos muros.
E por fim ele adormece, e eu levo-o ao colo para os profundos da mina.
Deito-o despido, num ritual limpo e materno como um coito.
“Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.”
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Sou um teclador de rebentos.
Os meus rebentos são idéias
sem sentidos, sensações.
Não os guardo deveras,
senão apenas teclo-os.
E tudo o que sinto é frio, ou calor
sede ou fome, dor ou tesão.
Tudo o que tenho são pensamentos,
leituras – transcrições em versos
que eu não sei se sei guardar.
Meu corpo quer deitar-se em minha alma,
mas o olhar dos sentimentos
me faz refazer os sonhos no fundo da mesma mina.
– Olá mineiro, aí à beira da mina!
O que sentis tu?
– Sinto que não tenho sensações,
só pensamentos que voam para bem longe do sol.
E leio, e escrevo, transcrevo...
E tu, o que sentes?
– Sinto muito mais do que tu.
Sinto a poesia bater em minha porta
sempre,
em todos os sentidos.
– Não sabes o que é sentir.
Sentir é saber ler
as sensações do outro.
Aquela mulher faz música com as teclas.
Belas músicas!
Dá vontade de dançar fora da mina.
Mas para quê um teclado musical,
se em minhas teclas virtuais
os pensamentos cantam?
Preciso de dar aos versos mineração citadina.
Talvez um dia os deponha à janela do mestre
que saudou “O sentimento de um ocidental”.
Assegure-lhes chão firme aos pés do menino-deus,
Posso expô-los ao Virgílio que Caeiro nunca leu.
Mas sem teclado ou avena, sem Títiro nem Melibeu.