A SOMBRA QUADRADA DA LUA
NA MANHÃ DE 13 DE JANEIRO DE 2014
(POEMA DE 31/10/1993, COM UMA E OUTRA REFORMULAÇÃO)
A noite não acaba nunca
e é céu de primavera
- agora pouco era manhã .
Na TV Sir Lawrence Olivier declama Milton
não sei a fase da lua
só sei que a noite não termina
na noite, na minha alma.
Hoje de manhã eu conseguia te amar
com alguma simplicidade
e ainda assim meu amor por ti doía
como dói um bailarino com a perna quebrada.
Neste instante não consigo te amar
porque estou toda em teu amor por mim
como o balé em que o bailarino de perna quebrada
não pode dançar.
Sir Lawrence Olivier, na TV,
pouco antes de morrer, e não sabia,
declama ainda os versos de jardins ingleses.
Oh, Lord, onde os ritmos do meu senhor
dentro de mim?
Chego à janela
fico a olhar o vulto da minha paineira cujas flores
me acompanham no Outono
mas é primavera
e mesmo se fosse agora Outono
teu amor por mim caminha em mim
como uma estrela a gritar de dor.
Uma estrela não dói – penso-
mas dói- esta estrela dói, esta estrela, tu,
apesar de estares, dentro de mim,
com tua armadura medieval
que te protege de mim
mas não impede que, misturado ao meu sangue,
teu sangue de prata continue a correr.
Quando eu te amava só com meu amor por ti
hoje de manhã
estava menos só
do que neste instante
com meu amor por ti oculto
entre as dobras do teu amor por mim.
Do sexto andar
um e outro ruído de carro
se desmancha rápido no ar
como no chão os passos de alguém
e teu amor por mim
percorre as ruas de mim
como um viajante arcado
sob duas malas pesadas
a tentar fugir para outro país.
Sinto dentro de mim
o teu pavor por teu amor por mim
e não me podes esquecer
dentro de mim
- Sir Lawrence Olivier ainda declama Milton
na TV e não sabe
que logo vai morrer.
Estou só e teu rosto, que é meu rosto,
não sei onde ambos estão
em que espelho
mas, tenho quase toda a certeza
de que tuas mãos e teu sexo
percorrem neste instante
o jardim de outra mulher
enquanto teu coração
bate dentro do meu
com teu amor por mim
com meu amor por ti.
Não sei se, quando eu não tenha mais o companheiro,
que me coube, também por destino
- e isso te matou, malgrado eu mesma ,
não sei, como dizia,
se me será possível
em algum outro tempo,
em alguma outra noite
em alguma outra tarde ou crepúsculo
percorrer os jardins de outros homens
porque, trancado e conquanto a dormir
aqui dentro de mim
acabarias por acordar em mim
na hora de um gozo de mim que não viria
e se viesse escoaria como o sangue
que estaria a escorrer de dentro de ti.
Ouço o teu amor inaudível
a gritar dentro de mim
só de pensares na hipótese
de algum homem futuro
vir a pulsar por mim e dentro de mim
e, em seguida, me chega teu silêncio
como se estivesses a te preparar
para um salto
da janela do sexto andar deste apartamento.
Quando hoje de manhã
o meu amor por ti
ocupava-me todos os espaços
o teu amor por mim conseguia ser uma ausência
provisória, nos meus nervos
e na minha cabeça
conseguia girar uma taça de vinho tinto
a taça que tanto sonhamos
tomarmos juntos
ou aquela taça de licor
- te lembras?
(Hoje eu sei, hoje, quase 20 anos depois
da escrita primeira deste aqui presente poema
de uma impossível quinta
perdida em Portugal.)
* Nota poética em 15 de fevereiro de 2013.
- Diante da tua cabeça neste instante de 1993
a noite deve estar girando, certamente,
por teu gozo
com alguma outra mulher.
Tantas e tantas manhãs
tantas e tantas noites
e tardes e crepúsculos e madrugadas
e insônias e sonhos adentro e afora
e nas colheitas de meu corpo
meu companheiro
a sentir, sem o saber, a sombra e a presença tuas
e eu a gemer de uma dor insana
por todos nós
e por tudo que estaria por vir
e eu não o sabia
- como o poderia saber?
Nesta noite não consigo sentir
dentro de mim
senão o teu amor por mim
esta flor que afirmas
sempre prestes a morrer
muito menos depressa do que morreria
se pudesse existir
apenas em teu jardim
esta flor que não sabes
e nunca saberás
desta flor do teu amor a queimar-me a mim
a queimar-me em mim
a queimar, junto com a flor do meu amor por ti.
Minha mãe acaba de acordar
e vem a sala com a pergunta:
“O que é o que é
que é redondo no céu
e quadrado na Terra?”
-Meio irritada porque interrompida
no terrível exercício
de sentir tua flor a morrer de dor
da dor de existir dentro de mim –
sigo minha mãe até seu quarto
para que ela me mostre
o que é redondo no céu
e quadrado na Terra
e ela aponta para o chão do quarto
onde a sombra da lua
se mostra quadrada
- e eu achava
que minha mãe
não sabia de Poesia.
Se pudesses estar aqui comigo
neste instante
para veres esta lua
quadrada na Terra
redonda no céu
talvez compreendesses, por fim,
o que há séculos
tento te dizer
nesta tua desde sempre
ausência de perdão:
esta sombra quadrada de lua
no chão do quarto
de minha mãe
de minha mãe que não sabe
- e por isso dou Graças aos Céus -
de minha mãe que jamais saberá
que jamais haverá de saber
de sua filha estrangeira
de sua filha a carregar para sempre
outra alma e outro corpo
dentro, para sempre, da própria alma
e do próprio corpo
que nunca, nunca mais
serão apenas dela mesma,
desta tua filha vinda
sabe-se lá de que mundos, mãe.
Poema escrito em 31 de outubro de 1993, publicado no Recanto das Letras no início de tarde de 19 de agosto de 2012, quase 19 anos depois, com alguns poucos acrescentamentos e uma e outra alteração no conteúdo original; republicação hoje, na manhã de 13 de janeiro de 2014 (hoje, 25 anos do início de tudo).