A SOMBRA QUADRADA DA LUA

Na madrugada de 15 de fevereiro de 2013

POEMA DE 31/10/1993, COM UMA E OUTRA REFORMULAÇÃO

A noite não acaba nunca

e é céu de primavera

- agora pouco era manhã .

Na TV Sir Lawrence Olivier declama Milton

não sei a fase da lua

só sei que a noite não termina

na noite, na minha alma.

Hoje de manhã eu conseguia te amar

com alguma simplicidade

e ainda assim meu amor por ti doía

como dói um bailarino com a perna quebrada.

Neste instante não consigo te amar

porque estou toda em teu amor por mim

como o balé em que o bailarino de perna quebrada

não pode dançar.

Sir Lawrence Olivier, na TV,

pouco antes de morrer, e não sabia,

declama ainda os versos de jardins ingleses.

Oh, Lord, onde os ritmos do meu senhor

dentro de mim?

Chego à janela

fico a olhar o vulto da minha paineira cujas flores

me acompanham no Outono

mas é primavera

e mesmo se fosse agora Outono

teu amor por mim caminha em mim

como uma estrela a gritar de dor.

Uma estrela não dói – penso-

mas dói- esta estrela dói, esta estrela, tu,

apesar de estares, dentro de mim,

com tua armadura medieval

que te protege de mim

mas não impede que, misturado ao meu sangue,

teu sangue de prata continue a correr.

Quando eu te amava só com meu amor por ti

hoje de manhã

estava menos só

do que neste instante

com meu amor por ti oculto

entre as dobras do teu amor por mim.

Do sexto andar

um e outro ruído de carro

se desmancha rápido no ar

como no chão os passos de alguém

e teu amor por mim

percorre as ruas de mim

como um viajante arcado

sob duas malas pesadas

a tentar fugir para outro país.

Sinto dentro de mim

o teu pavor por teu amor por mim

e não me podes esquecer

dentro de mim

- Sir Lawrence Olivier ainda declama Milton

na TV e não sabe

que logo vai morrer.

Estou só e teu rosto, que é meu rosto,

não sei onde ambos estão

em que espelho

mas, tenho quase toda a certeza

de que tuas mãos e teu sexo

percorrem neste instante

o jardim de outra mulher

enquanto teu coração

bate dentro do meu

com teu amor por mim

com meu amor por ti.

Não sei se, quando eu não tenha mais o companheiro,

que me coube, também por destino

- e isso te matou, malgrado eu mesma ,

não sei, como dizia,

se me será possível

em algum outro tempo,

em alguma outra noite

em alguma outra tarde ou crepúsculo

percorrer os jardins de outros homens

porque, trancado e conquanto a dormir

aqui dentro de mim

acabarias por acordar em mim

na hora de um gozo de mim que não viria

e se viesse escoaria como o sangue

que estaria a escorrer de dentro de ti.

Ouço o teu amor inaudível

a gritar dentro de mim

só de pensares na hipótese

de algum homem futuro

vir a pulsar por mim e dentro de mim

e, em seguida, me chega teu silêncio

como se estivesses a te preparar

para um salto

da janela do sexto andar deste apartamento.

Quando hoje de manhã

o meu amor por ti

ocupava-me todos os espaços

o teu amor por mim conseguia ser uma ausência

provisória, nos meus nervos

e na minha cabeça

conseguia girar uma taça de vinho tinto

a taça que tanto sonhamos

tomarmos juntos

ou aquela taça de licor

- te lembras?

(Hoje eu sei, hoje, quase 20 anos depois

da escrita primeira deste aqui presente poema

de uma impossível quinta

perdida em Portugal.)

* Nota poética em 15 de fevereiro de 2013.

- Diante da tua cabeça neste instante de 1993

a noite deve estar girando, certamente,

por teu gozo

com alguma outra mulher.

Tantas e tantas manhãs

tantas e tantas noites

e tardes e crepúsculos e madrugadas

e insônias e sonhos adentro e afora

e nas colheitas de meu corpo

meu companheiro

a sentir, sem o saber, a sombra e a presença tuas

e eu a gemer de uma dor insana

por todos nós

e por tudo que estaria por vir

e eu não o sabia

- como o poderia saber?

Nesta noite não consigo sentir

dentro de mim

senão o teu amor por mim

esta flor que afirmas

sempre prestes a morrer

muito menos depressa do que morreria

se pudesse existir

apenas em teu jardim

esta flor que não sabes

e nunca saberás

desta flor do teu amor a queimar-me a mim

a queimar-me em mim

a queimar, junto com a flor do meu amor por ti.

Minha mãe acaba de acordar

e vem a sala com a pergunta:

“O que é o que é

que é redondo no céu

e quadrado na Terra?”

-Meio irritada porque interrompida

no terrível exercício

de sentir tua flor a morrer de dor

da dor de existir dentro de mim –

sigo minha mãe até seu quarto

para que ela me mostre

o que é redondo no céu

e quadrado na Terra

e ela aponta para o chão do quarto

onde a sombra da lua

se mostra quadrada

- e eu achava

que minha mãe

não sabia de Poesia.

Se pudesses estar aqui comigo

neste instante

para veres esta lua

quadrada na Terra

redonda no céu

talvez compreendesses, por fim,

o que há séculos

tento te dizer

nesta tua desde sempre

ausência de perdão:

esta sombra quadrada de lua

no chão do quarto

de minha mãe

de minha mãe que não sabe

- e por isso dou Graças aos Céus -

de minha mãe que jamais saberá

que jamais haverá de saber

de sua filha estrangeira

de sua filha a carregar para sempre

outra alma e outro corpo

dentro, para sempre, da própria alma

e do próprio corpo

que nunca, nunca mais

serão apenas dela mesma,

desta tua filha vinda

sabe-se lá de que mundos, mãe.

Poema escrito em 31 de outubro de 1993, publicado no Recanto das Letras no início de tarde de 19 de agosto de 2012, quase 19 anos depois, com alguns poucos acrescentamentos e uma e outra alteração no conteúdo original; republicação hoje, na madrugada de 15 de fevereiro de 2013.