Parto ou Tinta ou O monstro

Existe um monstro que habita a geografia da alma.

Já notei que mora lá, tentei afoga-lo em banheiras cheias de vodka vagabunda,

mas apenas meu corpo era afetado.

Gastei horas em mesas de botecos pagas

com profissionais, garçons ou terapeutas,

ministros de fé e meus amigos das notas de rodapés (Soares),

que acalentavam minha mente,

mas não impediam que esse monstro cantasse sua canção de ninar

toda

noite.

Cada turno desses ele mostra os dentes,

mas não é em ameaça, é sorrindo.

É que o riso dele é feio aos despreparados,

aos de mente de estanho e silício.

Olhando daqui é um arrogante, mas pra ele isso é irrelevante.

Não se enxerga no tempo, isso é coisa de quem vive no corpo,

na geografia do animal ele só ri dessa irrelevância,

mas não há deboche. Esse monstro gosta do riso, não da causa do riso.

Não há causa.

Ele sobrevive de dois pratos de sanidade por dia,

lacera até sua carne pra conseguir mesmo uma pequena porção de turbilhão.

Seu lítio até mata essa fome, mas nem um caminhão de pílulas

vai encher o bucho dele de verdade. Vai faltar uma vitamina

que só existe no sangue dynfinico fresco, recém colhido da carne psiquiana,

sem a qual ele atrofia e morre e que ele precisa

toda

noite.

E na paisagem da alma ele vai apodrecer solitário, pois é no abrir das pálpebras

desse monstro que o resto dos habitantes da paisagem morre.

Deus e o diabo, mãe e pai, lua e sol, alfa e ômega,

ele enfiou no bucho no seu primeiro café da manhã,

não sobrou anjo nem demônio nessa paisagem antes árida,

cuidada então perenemente por esse monstro,

que antes de morrer vai lutar bravamente.

E o corpo dele vai apodrecer na maré do sangue que o alimentava,

sem ninguém pra fechar o corte,

que vai correr sem parar e inundar essa paisagem,

afogando montanhas, marezando as mais altas árvores...

E é por isso que hoje eu acordo e meus olhos

são os do monstro. O meu acordou. O meu tem fome.

É por isso que hoje minhas pernas são as do monstro,

que caminha na realidade com os caninos.

E é por isso que toda a noite antes de dormir

eu ouço ele cantar sua canção de ninar

toda

noite.

E minha boca, num sorriso meu, canta junto.