SEM RIMA 274.- ... língua mentireira ...
... língua, estranho instrumento
de procedência estranha:
... evolução natural?
... artifício cultural?
... criação para abraçar corpos e espíritos?
... invenção com o só alvo de reduzir
a noite fecha a luz do dia?
... na tribo (de que todos procedemos)
era tudo carinho e transparência,
chefe grátis, sem ordenados,
e irmãos e irmãs ociosos*?
Parece que assim foi onde quer
e na maioria das situações.
Então, reflitamos, que benefício
nos presenteou, mimoseou, recreou,
... arregalou o estado e nível civilizacional
a que temos chegado?
Hoje abunda a negação
do 'otium', tanto que tudo, mesmo o 'otium',
se acha submetido, escravizado
'negotium', cru e nu......
desnudíssimo, sem ornamento nenhum:
apenas os adornos flatuosos da voz,
da palavra oralizada e mesmo
da palavra grafiada......
Tenta-me parodiar o poema do Celso Emílio**
"Língua proletária do meu povo
eu falo-a porque sim, porque gosto,...":
"Língua deturpada dos nossos amos,
inaptos de a conhecer e usar,
só podemos calar, por ordem superior,
e apenas obedecer cegamente..."
(Entrementes, há ainda linguístas ousados
que ainda afirmam o dono da língua ser o Povo.)
:::::
(*) "Há um velho recorte, que nos vem pelo menos dos romanos, que é o do 'otium' versus o 'negotium', que não têm as acepções hoje usuais (e até vale a pena indagar por que mudaram tanto de sentido, com o ócio indicando hoje um lazer banalizado, e o negócio aquele conjunto de atividades que envolvem o ganhar dinheiro). O 'otium' é, mais ou menos, a 'vita contemplativa'. Não é simplesmente o lazer ou o estar à margem do mundo do trabalho; é, estando à margem do mundo do trabalho manual, poder com isso freqüentar o saber, os grandes valores, o conhecimento. Já 'negotium' vem da negação do 'otium', antepondo-lhe a partícula negativa 'nec'. É misturar-se nos negócios públicos, aceitar o burburinho do mundo, interessar-se pela coisa pública, pela coisa política. Não é demais dizer que a maior parte dos filósofos opta pela vida contemplativa. Será essa, aliás, a grande crítica que Hannah Arendt formula à Filosofia Política. Ela entende que a Filosofia Política é a tentativa de subordinar o conhecimento da coisa pública à Filosofia: tratar-se-ia de pensadores de vida contemplativa que, tratando do 'negotium', o estariam subordinando ao 'otium'." Renato Janine Ribeiro (1998), "Filosofia, ação e filosofia política" in Revista brasileira de Ciências Sociais vol. 13 núm. 36 São Paulo, Fevereiro.
(**) Celso Emílio Ferreiro Míguez (Celanova, Ourense, 1912 - Vigo, 1979) foi poeta e ativista galego. O poema citado pertence a "Longa noite de pedra" (1962), obra talvez mais importante e, em todo o caso, mais conhecida. Intitula-se "Deitado frente ao mar".