Cantiga de Escárnio: I Estásimo. Prostituída.
CANTIGA DE ESCÁRNIO
I ESTÁSIMO. PROSTITUÍDA
(Renan Flores)
Chega uma hora em que nada mais faz sentido. Chega uma hora em que mesmo o prazer não pode ser sentido. Chega uma hora em que tudo machuca. As carícias de todos os mil homens com que partilhei meu leito unem-se num coro pra tirar proveito de minha condição defasada, de minha carne trespassada.
Não sinto mais o prazer. As intensas noites de êxtase e magia substituídas pela cáustica ironia de hoje sentir-me envergonhada de minha indecente vida passada, regada a álcool e esperma, dormindo ao lado de brutos e palermas, que roncam e bebem, que gozam em minha epiderme, uivam de prazer quando ponho-me a gemer e não cessam de querer ver-me lentamente apodrecer numa repugnante taberna, num lodaçal branco de esperma.
Chega uma hora em que nada mais faz sentido, uma hora em que nenhum prazer pode ser atribuído. Chega uma hora em que o herdeiro deve ser destituído.
Eu, legitimamente herdeira do adultério, mãe de todas as crias dos senhores do Inferno, poderosa e soberana sobre toda forma de vida profana, abstenho de meu reinado cujo valor hoje é defasado.
No dia de hoje serei por mim mesma destruída, mas para toda a eternidade continuarei sendo temida.
Sou somente mais uma prostituída. E hoje não vejo qualquer valor na vida.