Crise Noturna

I

O resto do eco de dores expressando um gemido

consegue ir ressoar nos timpanos do meu ouvido

debruço-me no parapeito da janela, a questionar

na aparente amplidão do meu confortável abrigo

"existem tantos inquilinos sonâmbulos neste lugar,

será possível esses sons só se comunicarem comigo?"

Julguei ter controle o suficiente para ignorar o tal apelo

mas aquela criatura me fixava o seu par de olhos profundos

de uma pressa que se ressentia da passagem dos segundos

sentia nas horas tardias a incomum temperatura do gelo

Expressando-se com a sua ironia particular, com modo insosso

"noto o quanto te deixo inconfortável o meu passar, perdão"

meus nervos podiam jurar que neles repousavam uma mão

em cuja estrutrura molecular carcomida sobrara nenhum osso!

Engulo algo para tentar esquecer o estranho recado

mas a força da minha concentração me surpreende

pensando ser o único ser na Terra que compreende

a profundidade da natureza humana do comunicado

o mensageiro da as suas voltas, procurando quem o oriente

e mesmo sabendo que se deparou com todo o tipo de gente

ele gasta a sua energia ao ficar estupidamente ao meu lado!

II

Meu corpo, cansado da falta de coerência,

sentia relâmpagos instintivos da minha ira

não sabendo o que fazer com aquela coisa cuja a ciência

permitia a permanência daquilo cujo o tempo consumira!

"Vire-me já as suas costas, etérea aberração

e não tenho respostas, vá-te já embora então

a verdade é que preferiria ter nascido surdo

ignorar a finalidade biológica de uma laringe

mas converso com algo translúcido,que finge

ter tudo de natural este grandíssimo absurdo

Pergunto a mim mesmo se é possível não estar mais lúcido

pois ao badalar a meia-noite converso com algo translúcido

eu disse: "se entre toda platéia universal

nem mesmo um poeta entende o teu mal

Ele deve estar bem além de nossa finita estrutura

por mais que se tente, a consequência desse fato

é que nenhuma audição, nem a visão, nem o tato

consegue explicar satisfatoriamente esta loucura!"

III

Perco noção de como o tempo passa

fui correndo até a janela onde escancaro

pois pensei ter passado a noite em claro

mas o astro lunar se reflete na vidraça

Ao meditar naquela voz, em sua grande desgraça

eu fico de bruços no parapeito, viro e me deparo

com uma família de corvos famintos no anteparo

julgando ser meu aspecto anoréxico uma carcaça

Uma outra vez esta voz perguntava

"mas que tipo de feitiçeiro me trava

a este Mundo incompleto e rude?"

Respondi "você perguntar a mim é vão

mas a natureza dessa gravíssima questão

angustia tanto a minha quanto a tua saúde"

IV

E somente após esses lentos eventos

foi que o rumo atordoado dos ventos

fez o meu corpo trepidar-se com frio

O destino daquela torturada alma, a sua implicância

lembrava-me demasiadamente quando minha ânsia

trancafiava meus pensamentos ao horizonte sombrio

Dizia o espirito: "não me comparo à coisas ditas belas

a este monocromatismo cinzento somente me resigno

pois sei muito bem que não suportaria o peso do signo

carregado na visão das cores epilépticas das aquarelas

Os pensamentos que tenho fazem-me apenas digno

de confundir minha substancia à sujeira das favelas

pois dentro dos encéfalos de onde surgem o maligno

foi o local onde pude construir minhas variadas celas

V

O sol finalmente me veio,

verdadeiro daquela vez

trazendo o fim do devaneio

e o calor na bronze tez

Aquela imagem foi para longe, se arrastou

diminuindo em tudo numa lenta proporção

qual foi o meu espanto quando ela ficou

as sobras da sombra no sequíssimo chão

Depois entendi que toda aquela insânia

era uma quase-inexistência dando fruto

da flor que brotava num cérebro bruto

a rosa sintomática de um esquizofrenia

Foi tudo tão real, um dia tão revolucionário

e quase que não explico como tudo ocorreu

será que há quem explique o extraordinário

este sonho sonâmbulo, filho patológico meu?

Ernani Blackheart
Enviado por Ernani Blackheart em 05/01/2012
Código do texto: T3423212
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