SEM DEFINIÇÃO



Pois o que parece torto
autor não desencava
e se impróprio e profano
e se lhe torcem o nariz
sem ter algum vento a favor
vai despencando nas noites
e deslizando à boca pequena
crescendo em formas obscuras
sinuosas, subreptícias
e passeia em muita malícia
acres caminhos subterrâneos
habita os quartos de entulhos
os porões, as velhas cavernas
agita em noites eternas
e fermenta, borbulha e entorpece
põe a arma na mão do assassino
avilta, corrompe e fulmina
e sorrateiro se insinua
sob as vestes, tapetes, brocados
e se esgueira por corredores
e mata com a mão dos soldados.

É força e fraqueza das gentes
mistério nos sepulcros
trejeito que mal se percebe
quando os olhos fascinantes
e a voz acolhedora
encobrem a fria navalha.


Dos louvores, ato falho
das bondades, contradição
dos ódios nutriz abnegada
poeira nas estradas, e
nos olhos do viajante
cegueira e solidão!


Beatitude nos sermões
presença amordaçada
sob a capa da hipocrisia.


Sujeira debaixo da unha
sangue derramado, algia
esgoto a céu aberto
doença comendo as entranhas
princípio de vida e de morte
cabeça na guilhotina.


Descendo a ladeira o gado
direto pro precipício
não tem fim, não tem início
levando tudo às carreiras
tal coisa que não se captura
nem se doma, nem define
é batalhão sem bandeira
é dos desertos secura
violência, fúria desacato
no frio os pés sem sapato
na floresta uma navalha
voragem fluindo certeira
artefato em face tétrica
grita e fere a serra elétrica...


Mas também é pele macia
sob a seda, nas alcovas
é fogo de amor incontido
é paixão qual ventania
erguendo as saias
levando pudores
parindo em amores
os filhos da vida
e nos olhos do vendaval
é força, jardim, tantas flores
é peito ferido nas dores
é força ou loucura ou vício
não tem fim, não tem início.


Pois infinito em mente finita
não define, não explica
é sempre só um grito...


E no entanto é água profunda
sob aparente placidez de lago
espreita a mão ao afago.


É rubro desejo em corpos contidos
e põe nas mãos um leve tremor
e põe na boca um doce sabor
de fruto proibido...


À beira do precipício é tentação
vem a galope e invade
não tem dó nem piedade
é tudo e um nada inteiro
não tem fim não tem começo
e quem não pagar o preço
dormirá na hora da festa.


No fundo do poço
ainda há água pra beber
e o fim da linha
 é coisa inventada
a vida é só um instante
 após o outro.


E o que parece torto
e corre à boca pequena
e posto em degredo e masmorra
não se cala, vem à tona
e mesmo sob escombros
respira e não desmorona
peito aberto
anjo desperto
ou demônio encoberto
ou tempo
ou vida
ou mar deserto...





(reedição de poema publicado em 2007)
tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 08/11/2010
Reeditado em 08/11/2010
Código do texto: T2604599
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