O NOME PRIMORDIAL
não és nada
és nada
és
nada ninguém
sou nada
não
nada ninguém
nada
nenhuma tua voz
nada nenhuma
voz
alguma vez
porém
eu tu
acreditamos
eu tu
tudo nos dizia
somos
alguma vez
alguma voz
nossa
vinha nas ondas
no ar
sabíamos
A Sorte
um Sortilégio
vieram
arrancaram-nos.
Fomos
- é possível lembrar?
Árvore?
Se quando algo me lembra
em mim, de nós,
me ocorre
Pássaro.
Árvore-pássaro
nos arrancaram.
Será
teremos mesmo sido
alguma vez
algo?
Pássaro-Árvore-Alguém?
Palavra pensada um pelo outro?
Fomos Palavra.
Deus fez o Verbo
o Verbo fez o mundo.
Eu te nomeei
Tu me nomeaste.
Nós nos criamos.
Demiurgo, te procurei
criatura por mim criada,
entre todas as coisas criadas.
Não nos soubemos re-conhecer
entre as coisas criadas.
Que palavra nossa
que silêncio nosso
tirou-nos a existência?
Mas, algo me ficou de ti
um som
não tua voz
um som no ar
no ar que vem de ti
- pulmões de ti?
um ar
som de outra voz
que ainda me diz:
Existes.
Teu som não tua voz
inverossímil
aos meus ouvidos
de carne
teu som impossível
a me dizer ainda
que existo.
Ser por mim criado
não me dás tua voz
me dás tua respiração
para dizer por um momento:
Existes.
Eu respondo sempre ao teu som
não à tua voz
eu te respondo
para prolongar-me
um momento mais.
Permaneço, ser que me criaste.
Permaneço, por teu som.
Permaneces, ser por mim criado.
Permaneces, por minha voz
mas, minha palavra
nunca mais a mesma
que te criou
e em teu som
nunca mais a palavra
que me criou.
Agora me lembro porque nós
pássaro, árvore
apenas dois dos nossos nomes.
parte do ar
parte da terra
parte do mar
Antigamente, na minha palavra espelho
eu via teu rosto.
meu rosto vias
na tua palavra espelho.
Quando se quebraram
nossos espelhos-palavra?
Ainda, às vezes, por um átimo,
o mundo criado antes de nós
nos diz que existíamos já
antes
antes que eu te criasse
antes que me criasses
nos diz ainda
que permanecemos.
Já não te sei nomear
já não me sabes nomear
Então, quê isso, essa, esse
sendo nós agora?
Só vozes fora de nós
quase nos nomeiam.
Elas têm certeza de que existo.
Elas têm certeza de que existes
Quase nos nomeiam.
Quase acreditamos.
Mundo criado antes de nós
mundo enorme.
Onde?
Em algum lugar da memória.
Onde?
Às vezes, meu canto
cria alguém em mim
com o nome que um dia
deram-me meus pais.
Às vezes, quando canto
e quase quando escrevo.
Tento recriar-te
tal como
no instante inicial
quando começaste
desde o tempo infinito
o mesmo
que permaneceste
durante o tempo
em que um outro
entrou no meu tempo.
Vou te recriando
enquanto escrevo
mas não tens como saber
que te recrio.
O tamanho do Amor
do momento original
em que te criei!
O tamanho do Amor
do momento original
em que me criaste!
Achei-me de repente
teu único nome possível:
Saudade
como em Camões:
Sião.
Por que não permanecemos
à imagem e semelhança
daquele
daquela
primeiro homem
primeira mulher
que um dia te criei
que um dia me criaste
quando ainda não havia o Tempo
e não se sonhava a agonia
que seria
passar a vida afora na tentativa
sempre vã
de dar nome ao Indizível ?
Ganhamos nosso rosto humano
por isso o Esquecimento.
A Árvore do Conhecimento.
Agora sei
que o que deixamos de ser
sem jamais o deixarmos de ser
era necessário.
Sei também:
Voltaremos
ao passado mais longínquo
aos quase-não-tempos
véspera
de nos reconhecermos
novamente puros
mas com tudo
o que aprendemos.
Lembro o elemento
que nos faltou nomear:
O fogo.
Não me lembro do nome que tivemos
enquanto fogo.
Quatro os elementos
três nomes:
peixe, árvore,pássaro.
Ah, lembro-me agora
lembrando-me
o crio novamente
agora
o nome inicial
primeiro elemento
o fogo
primeiro nome
o nome desde sempre
desde antes do sempre:
AMOR.
Zuleika dos Reis
Texto original de 15 de novembro de 1993.