Nirvanas II
Você ainda pode ouvir os passos na calçada,
as risadas das crianças que um dia envelhecerão,
o sangue chiando dentro de sua cabeça
e toda uma maquinaria complexa
que lhe faz chorar
com toda a competência dramática
de uma profissional da teledramaturgia.
Fazia. Talvez um dia ganhe um prêmio
– corroído em ferrugem.
O silêncio é capaz de matar.
Você, porém, não faz questão de falar consigo.
Apenas um corte.
Dois. Muitos. Quem condenará?
Quem ousará pôr em xeque a inocência?
Dar o sangue é sublime, tão clássico
de comoções comiserativas
literárias e cênicas.
Chegamos naquele ponto culminante
de gestos expressionistas,
magnânima suspensão de gestos,
olheiras profundas
e cegueira para tudo que soar razoável
e demasiadamente ocidental.
Extinguiu-se o argumento; está roto e remendado
o pacote de moralismos arcaicos
no qual, sem sucesso, tentaram encaixá-la
desde o mais tenro ócio.
“Ó vida fugaz!...
Ó minhas celulites!...
Minha taxa de colesterol me consola;
o céu é insuportavelmente azul,
o céu é insuportavelmente cinzento.
Todos saberão...”
Cicatrizes que a vida deixou em você
(cicatrizes que você deixou na vida)
começam a se romper.
Não há por que resistir.
Há um ideal mais (menos) nobre (pobre)
que brilha sobre sua cabecinha proletária.
Há uma chance de vencer o campeonato da inutilidade
e adentrar o cúmulo do... ah, deixa pra lá.
Pílulas, giletes, canções sertanejas,
oh, sim! Ainda é possível a transcendência.
Balas, forcas, ara-kiri,
sim! Você se eleva, sim;
se eleva numa nuvem girante,
se eleva numa carruagem de fogo,
se eleva com um sorriso quimiopático
– adeus, Miss Farmácia!
Laura Palmer dos trópicos.
Eleve-se para bem longe da incompreensão (pensão)
dos homens (incompreendidos)
e da burocracia (de todos).
Só mais um corte
e todos a prantearão no belo funeral,
enquanto você os estiver abençoando lá do alto,
imortalizada, livre,
acima da previsível mesquinhez
da plebe...
(Matéria de capa do Notícias Populares:
“Encontrada numa banheira de sangue”)