Coisifique
Coisifique-me
Coloque-me na gaveta imaginária
dos sonhos
Coisifique-me
Coloque-me a enfeitar sua vista
Na prateleira dos afetos descartáveis
Coisifique-me
É melhor do que simplesmente me ignorar
Coloque-me num canto da sala
Numa fresta,
Num desvão da escada,
Numa parede pintada de mostarda
No gosto irreconhecível de nostalgia
Coisifique-me
será fácil
Porque coisa não se aborrece
Porque coisa não chora,
Não grita e não sofre
Apenas se desgasta no tempo, ruí, desaba
Perece infinitamente até desaparecer .
Coisifique-me
E me esqueça na prateleira
a colecionar pó e ácaros
a ostentar uma lembrança
Que todos tentam esquecer.
Coisifique-me
Pois a pessoa que há no personagem
diante de seus olhos
Não é palatável,
Não é moldável
Não é manipulável...
Sou resultado de uma história
Recortada por sentimentos,
Ausências e alguns traumas.
Coisifique-me.
Assim poderei abominar a humanidade
sem nenhuma culpa.
Poderei permanecer nas prateleiras
a espreita de uma novidade
E na humanidade objetável
poderei ainda tentar em vão
humanizar quinas, vãos, vazios
e corredores extensos.
Poderei magicamente imaginar
o diálogos dos talheres,
das louças, das portas abandonadas
que vivem fechadas e tristes.
Poderei ouvir os lamentos do vento,
as lágrimas do orvalho,
e, entender a manhã
completamente
coisifcada, bestificada
olhando pela janela da sala.
Sendo a sala que se projeta pelos
raios de sol.
Sendo a gaveta que guarda os
segredos e, em silêncio
sem ranger, se fecha
para o esquecimento da mobília.