Retinta
são negros demais,
são turvos demais,
e na escuridão a cegueira se ajeita como
quem veste uma luva
e, na embriaguez lépida da manhã
uma reles gota de orvalho
é uma lágrima de uma fada boa
ainda assim existem as trevas,
as luzes difusas em torno das sombras,
o contorno perecível dos corpos,
e perfume de jasmim
a inundar a varanda de recordações...
são negros demais,
sujos demais,
pobres demais,
e se esforçam a compreender a vida,
a sina e melanina que deus lhes deu...
mas a diferença é uma sórdida mentira,
é filha bastarda e rendida
à razão das essências
que só conhece a verdade.
são todos dotados de igual humanidade,
de igual sentimentos,
de igual sangue e mazelas
mas há ainda assim,
num país de mestiços
há quem queira ser príncipe e branco,
ariano e puro
e dotado de raça superior
são uns vira-latas
falsificando pedigree,
imitando poodles,
e fazendo de seu biotipo
algo risível
ao invés de palpável...
por um só instante,
toda aquela diferença,
toda aquela vaidade,
de estirpe e de estilo
se esvai numa cova rasa,
numa morte banal
ou brutal,
ou ainda, pelo inexorável
esquecimento a quem devotamos
às coisas e pessoas medíocres...
o racismo é crime,
mas ainda assim há tanta discriminação,
nos olhos, nos corpos, nos gestos
e sobretudo na alma...
ainda bem que chico césar
já avisou que alma não tem cor...
alma não tem cor
mas hoje eu estou retinta