Itinerário íntimo

“Le plaisir qu’on trouve à voyager dans sa chambre est à l’abri de la jalousie inquiète des hommes; il est indépendant de la fortune.”

(XAVIER DE MAISTRE)

“Como outrora do mundo os elementos

Pela treva jogando cambalhotas,

Meu quarto, mundo em caos, espera um fiat!”

(ÁLVARES DE AZEVEDO)

I

Ultimamente ando tão entediado!

Há algum tempo até veio me visitar

Um pequenino diabinho azulado;

Com ele então pus-me bastante a conversar,

Até que de mim ficasse ele tão cansado

Que está às beiras de logo me abandonar.

Por tanto tempo dura esta melancolia

Que de minha presença até já se enfastia!

II

Por toda a minha vida livros perscrutei

Que relatavam feitos de exploradores;

Acho que o exemplo deles imitarei.

Como um desses antigos nobres viajores,

Em minha própria jornada eu partirei

A fim de sanar os meus pesares e dores!

(E mesmo que não o consiga no final,

Não gastarei qualquer dinheiro afinal.)

III

Pois sim, amigos! Viajarei sem um tostão!

Desde que tive a grande infelicidade

De tomar a poesia como profissão,

O Deus-Dinheiro com asco de mim se evade

Por mais que por ele eu clame em oração.

E se acham que estou faltando com a verdade,

De Xavier de Maistre vieram a se olvidar?

Nem necessitou ele seu quarto deixar!

IV

E por ser só isto o que posso pagar,

Numa viagem agora irei partir;

Pelo meu quarto haverei de passear,

E o tanto quanto puder vou me divertir.

Se quiseres, ó leitor, me acompanhar,

Com muito prazer o deixarei me seguir!

Permita-me que, por apenas este dia,

Por todo o percurso eu sirva-lhe de guia.

V

Primeiramente quero estar bem-arrumado:

Posso ser pobre, mas tenho um quê de vaidade.

Não esperes, porém, que serás informado

De minha toalete em totalidade –

Tal segredo para sempre será guardado!

(E confesso, com toda a minha honestidade,

Que a quem isso interessaria? Não sou linda

Feito de Pope a graciosíssima Belinda.)

VI

E antes que de fato à nossa excursão zarpemos,

Como sou bom aprendiz de Alcofribas

O oráculo da garrafa consultemos:

Nunca faço nada antes de degustar

De um bom vinho. Portanto, ó leitor, brindemos!

Que a Fortuna possa nos abençoar –

Sejamos por Baco fielmente acompanhados

E nossos passos sejam por ele guardados.

VII

Qual um espelho de minha mente mergulhada

Nas trevas da mais excruciante loucura,

Quis certificar-me de que minha morada

Superasse de Fuseli a mais negra pintura –

E se por Hoffmann pudesse ser visitada,

Coisas veria da mais bizarra figura

Que até de seus escritos o mais delirante

Pensaria ser enfadonho e maçante!

VIII

(Já dizia o santo homem afinal:

“A luz, ao vulgo benéfica e proveitosa,

A olhos doentes tão somente causa o mal”.

Mas a flor do lótus só crescerá formosa

Em meio ao mais repugnante lamaçal;

Portanto, ó leitor – ou leitora melindrosa –,

Se aquilo que acho belo a ti contrista,

Suum cuique! Cada qual com seu ponto de vista.)

IX

Trago várias grotesqueries acumuladas

De acordo com meu ânimo e disposição:

A um canto, com a bocarra arreganhada,

Está a réplica perfeita de um dragão,

E uma Hécate serena e empoeirada

Parece dar ao recinto sua bênção

Invocando do Hades espíritos mil

Que atiçam minha imaginação febril.

X

Com as vácuas órbitas a nos encarar,

Um vetusto crânio, alvo e ressecado,

Parece de alguma forma nos invejar,

Do passeio querendo ter participado.

Que façanhas tu poderias nos narrar

Se Azrael tua alma não houvesse ceifado?

“Alas, poor Yorick!” citar até poderia,

Mas parodiar o Bardo eu não ousaria.

XI

Alguns quadros trago acolá dependurados,

Mas quem pintou-os não queira me perguntar!

Seus vítreos invólucros foram ofuscados

Por camadas de uma poeira secular.

Se tal mistério um dia for solucionado,

Lautamente haverei de recompensar

Tal alma nobilíssima e caridosa

Que, a mim oposta, fosse menos preguiçosa.

XII

Sendo o monarca de meu pequeno império,

Cá tenho de minha Coroa a regalia:

Qual cetro valho-me de meu cachimbo e, sério,

Minha etérea corte rejo todo dia.

Não cometas, amigo, qualquer vitupério

Contra o tabaco! Tem ele sua magia –

Incandescendo o âmago de teu ser,

Do seio expectora o que está a o roer.

XIII

Tenhas a gentileza de me acompanhar

Ao pela porta atravessarmos adiante –

Mas atente-se, ou virás a tropeçar

Num Flegetonte de roupas no mesmo instante!

Minhas vestes jogadas estão a lutar

Em vertiginosa moção rodopiante,

E quem sabe a algum artista inspiraria

Um vívido retrato da Cosmogonia.

XIV

Entre Cila e Caríbdis, qual escolheria?

À esquerda jaz um vade mecum esquecido

Que, de tão amarelo, alguém o tomaria

Por um arcaico Codex romano perdido.

A magistratura ambicionei um dia,

Mas dei as costas a tal plano, arrependido:

Prefiro ser poeta e morrer esfaimado

A vender minha honra sendo advogado.

XV

À direita, um gigantesco monumento

Inteiramente de fracasso construído

Zomba de mim, desdenhoso, a todo momento:

Pilhas de cópias de meu livro não vendido

Se espalham feito um miasma purulento –

Quem me dera nunca houvesse concebido

Àquela pérfida garota tal história!

Feito uma chaga ela me infecta a memória!

XVI

Boiando feito embarcações condenadas

Em meio a uma tempestade pelejando,

Antigas garrafas de vinho esvaziadas

À deriva se entrechocam tilintando.

A tal repetitivo fado resignadas,

Façamos uma pausa, leitor venerando,

E dediquemos uma nobre oração

Para que Deus lhes dê um dia remissão.

XVII

Ali repousa meu amigo candeeiro

No qual confio mais do que em qualquer pessoa:

Ao trabalhar num poema o dia inteiro,

Com sua luz fartamente me abençoa –

Não faz questão de cobrar-me qualquer dinheiro,

E de meus patéticos versos não caçoa!

Em meio a tantos dissabores sou honrado

Por ter tal fiel companheiro ao meu lado!

XVIII

Descendente do candeeiro de Azevedo!

Por uma fatalidade seu ancestral

Veio a falecer demasiadamente cedo

E não cumpriu sua promessa afinal –

Mas assumirei sua œuvre sem ter medo,

E algum dia escreverei, até o final,

Um longo panegírico o representando

Como dos candeeiros modelo venerando!

XIX

Dirija o olhar à minha poltrona então,

Que o mais lascivo dos sultões invejaria:

Se um trono não tivesse em meu saguão,

Mas que espécie de monarca eu seria?

Se me ofertassem outro sob a condição

De deixar meu próprio palácio, o negaria –

Defronte à minha janela assentado,

Deleito-me em contemplar o céu, inspirado.

XX

Em minha mesa vê-se uma profusão

De velhos livros, loucamente embaralhados;

São os poetas de minha predileção,

Quase diariamente por mim consultados.

Um tanto úmidas com lágrimas de emoção,

Entre suas folhas quase sempre há guardados

Algum retalho de papel com um versinho

Ou de uma amiga um carinhoso bilhetinho.

XXI

Aquele que perscruto mais frequentemente

É meu Virgílio; consulto sua loteria

Sem nunca esquecer-me, religiosamente

Sempre que me levanto para mais um dia.

Porém confesso estar deveras descontente

E em meu lugar não sei o que outro faria:

A cada pergunta sou sempre remetido

À passagem do suicídio de Dido.

XXII

Tendo sido educado como um bom cristão,

Minha Bíblia também me é essencial.

(Sei que Deus-Pai, este senhor tão bonachão,

Não leva meus usuais gracejos a mal

E por todos eles me daria perdão –

Não teria senso de humor, afinal?

Se até nosso criador gosta de brincar

De vez em quando, por que devo-o contestar?)

XXIII

(Há algum tempo, inclusive, até pensei

Que, se tentasse, um bom padre eu daria –

Entoando “Pater noster” e “Agnus Dei”,

Pão e vinho na mesa não me faltaria.

Um sermão sério e elegante ensaiei,

Mas vi que à nossa Santa Igreja vexaria:

Aproximar-me de Vieira eu tentava,

Entrementes a Sterne mais me assemelhava.

XXIV

É quase como se Talia, tão zelosa,

De mim ainda no berço se aproximasse

E, manuseando seu bastão, amorosa,

Com todo o carinho de seu ser me marcasse.

Não importa quantas Musas eu invocasse

Sempre ela me aparecia, orgulhosa:

“Inimigo jurado da Seriedade,

Comigo estarás por toda a eternidade!”)

XXV

Um Chimborazo de papel vem a se erguer

A um canto do quarto, altivo e imponente:

Espera pelo dia em que vou escrever

O épico que me trará fama finalmente,

Mas a isso nunca consigo me convencer –

Falta-me talento! E assim, estoicamente,

Permanece a montanha, em mistério embrulhada,

Esperando o dia em que será explorada.

XXVI

Resquícios de versos, aqui e ali,

Podem ser com algum esforço encontrados –

Toscos ensaios que um dia escrevi

Mas que sem um final foram abandonados,

Pois indicam quimeras das quais desisti.

Que no esquecimento jazam sepultados!

Passados vários séculos, talvez um dia

Os conclua um poeta de maior valia!

XXVII

E ali está o meu leito, tão adorado!

Sempre disposto a toda noite me levar

Ao místico e longínquo reino encantado

De Morfeu! Apenas lá posso encontrar

As alegrias que, desperto, hão me negado –

E quando a Aurora vem de lá me expulsar,

Qual Caliban choro desconsoladamente

Desejando dormir e sonhar novamente.

XXVIII

Minha pequena aranha de estimação

Anda pelo teto, livre e despreocupada –

Seu único motivo de consternação

É se hoje sua fome será saciada.

Às vezes, no âmago de meu coração

Venho sentir de inveja alguma pontada;

Da condição de humano abdicaria

Para viver em seu lugar, só por um dia.

XXIX

E estando em falta de um legítimo herdeiro,

Quando na Terra eu não estiver mais presente

Deixo a ti, aranha querida, o quarto inteiro

Para teceres tuas teias livremente!

Dos aracnídeos o mais leal companheiro,

Que tua prole se expanda eternamente!

Carregue o nome, em teu pequeno coração,

Do benfeitor de toda a tua geração!

XXX

Como todo reino tem o seu panteão,

Em meus domínios um também vim a erguer:

Todo dia me prostro em admiração

A quatro retratos na parede a pender.

Inscritos para sempre em meu coração,

Não pode com sua mão o tempo remover

Dele estes nomes, que sempre vou venerar

Até o dia em que a Morte me levar.

XXXI

O primeiro é de meu amado mentor –

Em forma humana transmutada a Poesia.

Perdoa, Byron, este admirador

Que teu estilo macaqueia e estropia!

Como queria poder ser teu sucessor

E, por amor à Liberdade, algum dia

Partir à Grécia e por ela pelejar,

E meu sangue em nome dela derramar!

XXXII

O segundo é Musset, este cortesão

Que o maior prêmio dentre todos alcançou:

Da George Sand o volúvel coração.

Não amaldiçoem o fel que se apossou

De seus versos, envenenando-lhe a canção!

O escárnio do mundo o contaminou

Tal como o faz, com infalível frequência,

A todo aquele que esbanja inocência.

XXXIII

O terceiro é Pushkin, cujo gênio inflamado

As neves da Rússia podia derreter.

Podem dizer que o pobre-diabo foi chifrado

E perdeu sua vida por uma mulher,

Mas para mim nada existe mais honrado

Do que em nome de uma senhora morrer –

Por mais que eu seja um tanto quanto galhofeiro,

No fundo ainda creio no amor verdadeiro.

XXXIV

Já este último… como o posso pintar

Com este meu pincel tão inexperiente?

Deste semblante não posso capturar

A feminil beleza, por mais que eu tente;

Mas gostaria de ao menos o esboçar

Para que em meu verso seja eternamente

Gravado este rosto por mim tão querido,

Com cuidado pelas mãos de Amor esculpido.

XXXV

Minha Anastasia! Ideal que tanto almejo!

Só Deus sabe o quanto hei imaginado,

Com minhas faces afogueadas de pejo,

Que finalmente tenho a ti do meu lado

E insolentemente roubo-te um beijo!

Cultuarei teu retrato tão adorado

Tal como cultuou, nos tempos de outrora,

O alucinado Tasso a sua Leonora!

XXXVI

Não tenho pai, tampouco mãe; fui deserdado

Já que preferi perseguir a Poesia

Em vez de outro ofício mais respeitado.

Nenhum dos dois, decerto, por mim choraria

Quando meu último suspiro eu tiver dado.

Mas, sob a lápide, feliz eu jazeria

Se no Além, ó vates, vós fôsseis meus numes –

E a vós guiasse-me Anastasia – meu lume!

XXXVII

Tal como se finda a Commedia de Dante,

No qual este contempla a Santa Potestade

Nos píncaros do Céu entronada, distante,

Para mostrar que também sei ter gravidade

Encerro as coisas de maneira semelhante:

Com o máximo possível de seriedade,

A última parada de nossa excursão

É destinada a silente meditação.

XXXVIII

E que estes quatro sacrossantos semblantes

Queiram o nosso retorno abençoar,

Já que, dentro de alguns poucos instantes,

Nossa viagem está prestes a acabar.

Queira dar-me tua mão, ó leitor, antes

De teu caminho seguir de volta a seu lar –

E prometa visitar-me novamente

Para passearmos, outra vez, alegremente!

XXXIX

E se por teu quarto quiseres viajar,

Sinta-se livre para experimentá-lo;

Acho que De Maistre não ia se importar

Se em seu método viéssemos a imitá-lo.

E não te esqueças! Se quiseres me chamar,

Ficaria honrado em acompanhá-lo!

(Particularmente se tu fores mulher,

Se compreendes o que quero lhe dizer.)

(São Carlos, 31 de julho de 2019)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 31/07/2019
Reeditado em 30/03/2023
Código do texto: T6709010
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