Demetre e Ketevan: Um sarau (Parte I de III)
“[…] Eu sinto no meu crânio,
Como em seio de mãe, um feto vivo…
Na minha insônia vela o pensamento:
Os poetas passados e futuros
Vou todos ofuscar… Aqui no cérebro
Tenho um grande poema. Hei de escrevê-lo…
É certa a glória minha!”
(ÁLVARES DE AZEVEDO)
I
O mundo, meu leitor, é enorme e variado,
E nele há vasta gama de profissões.
Se teu latim não estiver enferrujado
E fingires que sabes das legislações,
Podes ser, por exemplo, um advogado,
E faturar várias centenas de milhões
Extorquindo as massas pela vida inteira.
(Só não deixes que o peguem, de qualquer maneira!)
II
Se teu ego for massivo e insuportável
A ponto de só a ti não poder abarcar,
Serás um professor no mínimo passável –
Uma classe é só o que deves encontrar
E sementes da tua arrogância intragável
Em cada um de teus pupilos implantar,
Lançando ao mundo mais um bando de boçais
(Como se já não os tivéssemos demais!).
III
Mas se o que é terreno lhe é desagradável,
De padre podes conseguir a ordenação
E viver uma vida mansa e honorável
Bebendo bom vinho e comendo branco pão
Até adquirir uma pança respeitável
Entre um e outro “Deo gratias”, tal qual um leitão
A ser devorado com todo o afã
Pela alegre comitiva de Satã.
IV
Ao infinito a lista vem se estender,
E não gostaria, leitor, de te enfadar.
Se não tendes nenhuma para exercer,
Espero que alguma possas encontrar
E lucro (mesmo que escuso) obter.
Mas um conselho de amigo vou-lhe dar:
Ser poeta é virar as costas à sorte
E assinar tua própria sentença de morte.
V
Não há mais Mecenas como antigamente…
Ínfimo (isso quando o há!) é o pagamento;
Vivo roto e esfarrapado constantemente
(Nem pareço um homem, e sim um cão sarnento),
E meu pobre estômago com frequência sente
Da mais lupina fome o dorido tormento –
E o último parco lucro que ganhei
Com livros para a minha estante o dissipei.
VI
Às vezes, quando é tarde e quero dormir,
Minha mão não consegue parar de escrever;
Versos aos borbotões não param de sair
E a inspiração não consigo interromper –
Já noutros dias nada consegue fluir,
E desisto de qualquer coisa fazer
Para invocar a Musa que de mim se esquiva,
Gargalhando caprichosa e altiva.
VII
Meu quarto exíguo está todo atulhado
De exemplares de meu livro não vendido;
A única coisa que com ele hei lucrado
Foi um bom ano de minha vida perdido
Com alguém que jamais devia ter amado,
Mas de quem nunca totalmente hei me esquecido.
Pelo menos não sinto frio quando é inverno:
Minha lareira tem combustível eterno.
VIII
É um fato universalmente reconhecido
Que só depois que um século se passar
E da face da Terra eu já tiver sumido,
A crítica minha obra irá reavaliar
E por todo o populacho serei lido.
Esse dia, porém, demora a chegar,
E na mais abjeta miséria viverei
Até acabar como Chatterton ou Otway.
IX
Portanto, ó leitor! Amigo estimado!
Tudo aquilo que quiseres podes ser,
Mas é bom que estejas muito preparado
Se atrás da Poesia ambicionas correr.
Sinto muito se o deixo desapontado,
Mas já sou perito na arte de sofrer –
Como poeta tenho anos de experiência
(E não sou muito receptivo a concorrência).
X
Mas hoje finalmente entrarei à História;
Meu mais belo e melhor poema hei concluído,
E meu nome será inscrito na memória
De meu país, e por todos serei querido.
Só de imaginar o doce sabor da glória
Se rompe o meu coração, enternecido!
(Já disse isso milhares de vezes antes,
Mas é essencial nos mantermos confiantes.)
XI
Com o mero intuito de te agradar,
Criei uma ótima história, meu leitor:
Há tragédia para fazê-lo chorar,
Mas também uma boa dose de humor
Para igualmente tudo balancear –
E é claro que não posso esquecer do amor,
Pois certamente nas senhoras também penso,
E por elas tenho um carinho imenso.
XII
Mas antes que a meu editor possa mandá-lo
Para que in-fólio possa ser publicado
(E que meu retrato venha a adorná-lo
Fielmente em seu frontispício estampado),
Gostaria de a meus amigos mostrá-lo:
Nada faço sem tê-los antes consultado,
E muito poucas vezes me arrependi
De quando seus ótimos conselhos ouvi.
XIII
(Uma ocasião que vale a pena relatar
Foi quando convenceram-me veementemente
Àquele meu tosco romance publicar
E mostrá-lo à minha amada que, finalmente,
Meus sentimentos iria reciprocar –
Plano este que fracassou miseravelmente.
Foi-se ela, sem que um parágrafo tenha lido,
E que uma cópia a outrem eu tenha vendido.)
XIV
Mas deixemos o que passou no passado;
Faz parte da natureza humana errar,
Portanto a todos eles eu hei perdoado –
Ainda mais porque sei que vão concordar
Que esta é a melhor obra que hei criado,
E que talvez possa me reabilitar
Aos olhos de minha velha amada inconstante,
Que voltará aos meus braços no mesmo instante.
XV
Já faz um tempo deveras considerável
Que com meus associados me reuni –
Muitos têm um ofício mais respeitável
Do que o que para mim loucamente escolhi.
Vou chamá-los a um sarau mui agradável
Para que outra vez possamos nos divertir
(E seja então devidamente aplaudido
Depois que meu poema a eles tiver lido).
XVI
Num elegante papel de carta timbrado
Escrevo a eles da seguinte maneira:
“Meu saudoso amigo! Estás convidado
A um bom sarau na próxima sexta-feira –
Venha, que serás muito bem recepcionado!”
Minha morada é simples, mas hospitaleira;
Até mesmo tu, meu leitor, se puderes,
Podes comparecer, se assim o quiseres.
XVII
(Às damas também não esqueci de escrever,
Claro que em termos mais diferenciados:
Se queres sensibilizar uma mulher,
Deves valer-se de termos mais floreados
Para que a qualquer coisa a venhas convencer,
Mas não me importo em dar a elas uns agrados –
Afinal, o que este meu sarau seria
Se das senhoras não tivesse a companhia?)
XVIII
Todos os convites foram enviados,
Mas não achas, leitor, que nos enfadaremos
Esperando tantos dias serem passados
Até que à nossa auspiciosa data cheguemos?
Com os poderes que a mim foram confiados,
À vindoura sexta-feira aceleremos!
(Posso fazer qualquer coisa, sendo o autor;
Assim me disse Sterne, meu grande mentor.)
XIX
E finalmente é chegado o grande dia!
Tudo está devidamente em seu lugar,
E com um misto de ansiedade e alegria
Espero o primeiro convidado chegar.
Ó leitor! Estarás em boa companhia:
De meus amigos certamente vais gostar.
Conheço-os por quase minha vida inteira
E sou-lhes grato de uma ou outra maneira.
XX
A ti portanto eu irei apresentá-los,
À medida que eles forem chegando;
Espero que possa fielmente pintá-los
Em meu poema, meu leitor tão venerando!
Nada mais natural que imortalizá-los
De forma digna os homenageando
Como o mais sincero agradecimento –
Ouvi baterem-me à porta! Um momento!
XXI
Naturalmente, como era de se esperar,
Gospodin Noli, meu mais caro associado,
Foi de todos o primeiríssimo a chegar;
Fielmente esteve ele ao meu lado
Por mais tempo do que consigo me lembrar.
Um rapaz imensamente amargurado,
Mas se por seus dissabores, leitor, passasses,
Talvez por seus defeitos tu o desculpasses.
XXII
Conterrâneo (e discípulo igualmente)
Do mordaz e ferino Boca do Inferno,
No semblante de Marques (constantemente
Esqueço-me de seu prenome) vive eterno
O escarninho riso do desdém mais pungente
Pelo que representa o mundo moderno.
Um aviso: não venhas a desagradá-lo,
Ou numa piada ele irá transformá-lo.
XXIII
O nobilíssimo Miguel, tão bonachão,
É o único no mundo disposto a tomar
Por motivos honestos sua ordenação,
Sendo o único padre que posso respeitar.
Com a Igreja tive minha dissensão,
Mas a seu seio estou disposto a voltar
Se descobrir que este homem chegou ao papado
Ou que como um santo foi canonizado.
XXIV
Do belo principado que só uma vez vi,
Vem minha afável Sarah, linda e perfumada;
Em seus braços traz um rechonchudo kiwi.
“Com meus bichos andei bastante ocupada!
Te importas se ele também ficar aqui?”
Aquiesço; a ela não consigo negar nada.
(E lhe omito, por decoro e educação,
Que a um canto a ave defecou em meu chão.)
XXV
Da pequenina Naoto eu diria
Que a uma gueixa pode ser comparada,
Mas meu poema (e a ela) não macularia
Com tal comparação clichê e ultrapassada.
De sua mente falar eu preferiria:
Por fantásticos sonhos é populada,
E sempre que ela os divide comigo
Sinto que tenho sorte em ser seu amigo.
XXVI
Les sœurs Carrara! Um nome apropriado
A este par de irmãs, símbolos da candura,
Pois o corpo de cada uma foi talhado
No mármore da mais surpreendente brancura.
Às vezes penso não terem se originado
Da matéria terrestre tão chã e impura,
Mas sim que vieram para cá, disfarçadas,
Do fabuloso e longínquo País das Fadas.
XXVII
Do antigo culto da Madre Suspirosa
A pálida Rebecca é uma sacerdotisa;
A serpente da febre mais vertiginosa
Por cada palmo de seu cérebro desliza
Injetando-lhe sua peçonha, raivosa.
Suas crípticas visões ela exterioriza
Em pinturas que, se seu significado
Decifrares, ó leitor, deves ser premiado.
XXVIII
Meu anjo custódio! Adorada Dinah!
Dileta protetora de meu coração!
Sempre que estive às beiras de blasfemar,
Amaldiçoando a Deus por minha concepção,
Lá estavas tu para minha ira aplacar
Com o doce bálsamo da consolação!
Ah, se soubesses… (Não…! É melhor calar-me;
Em demasiado não quero revelar-me.)
XXIX
Do Valhalla é oriunda esta beldade;
De outra forma, Valquíria não se chamaria.
Modelo da mais pura feminilidade
E da mais luciferiana rebeldia,
Digo-te, meu leitor (é a mais pura verdade):
À George Sand inveja ela causaria.
Mesmo com o mais breve de um de seus olhares,
Pode fazer-te a seus joelhos te prostrares.
XXX
Pensei que meu convite não aceitaria,
Mas ora, vejam só! Aqui ela está!
A prestativa atendente da livraria
Que é como se fosse meu segundo lar!
Não sei o que da vida, Evelyn, eu faria
Se de ti meus livros não pudesse comprar!
(Só propõe-me ela uma única condição:
“Continue a me fornecer meu ganha-pão!”)
XXXI
Por último, mas não menos importante,
Aleksandrovna! Flor da mais fina nobreza!
Seu olhar aquilino e penetrante
Emite o brilho da mais glacial beleza,
E a majestosa altivez de seu semblante
Demonstra por si só que é filha da realeza.
Se o lhano Spenser a tivesse conhecido,
Uma melhor “Faerie Queene” lhe teria sido.
XXXII
E cá temos o rol de meus doze pares,
Que digo ser muito mais nobre e valoroso
Que aquele dos ancestrais medievos cantares.
E se Charlemagne aparecesse, belicoso,
Dizendo-me: “Ousas minha corte insultares?
Pagarás por tal gracejo pecaminoso!”,
Por minha honra e a deles batalharei;
Não levo desaforos nem mesmo de um rei.
XXXIII
E chega agora o momento tão aguardado;
Depois de bastante termos nos divertido,
Meu poema finalmente será declamado.
À volta da lareira nos hemos reunido
E começo a leitura, entusiasmado
(E em voz alta para por todos ser ouvido),
Do conto de Demetre, o cavaleiro errante,
E de Ketevan, sua castíssima amante.