A GOVERNADORA & MAIS

A GOVERNADORA & MAIS

William Lagos

FACETAS XXIX – A GOVERNADORA I – 16/7/2006

Bondosa é essa mulher que seu marido

deixa pensar que manda e que governa,

enquanto é ela que, mão firme e terna,

lhe sugere as ações, ao pé do ouvido...

sem enfrentar, nem maltratar o orgulho

de ser o ditador, que tudo pode;

que no seu lar, ao menos, se sacode

de humilhações externas e do esbulho

que sofre, enfim, sua masculinidade

no áspero lidar com adversários

e até mulheres que superiores são;

só em sua casa retoma a qualidade

de amo e senhor, nos gozos solitários

que ela finge lhe dar... por sedução.

A GOVERNADORA II – 17 ABR 14

Mas enquanto ele senta no sofá

e um jogo assiste na televisão,

ela sugere, como em confissão,

que ofertas de tevês maiores há...

“Pena que a gente comprar não poderá,

embora chegue já da Copa a ocasião...”

E se levanta, indo até o fogão,

pois o controle seu amor conservará...

E quando o jogo termina, lá vem ele,

“Sabes, querida, que estive pensando...

Será que cabe no nosso orçamento

uma tevê maior, que até congele

as imagens ou possa jogos ir gravando...?

E ela diz: “Ótima ideia, querido!” num momento.

A GOVERNADORA III

Ou ela fala, como quem nada mais quer:

“Fiquei cansada, tanta roupa fui lavar!

Tem de ensaboar e torcer, tem de esfregar,

mas que fazer: é trabalho de mulher!...”

E ele fica escutando; e nem sequer

responde a seu gentil tagarelar...

Depois vai com seus filhos conversar:

“Será que a mãe de vocês queria ter

como um belo presente de Natal,

alguma máquina, dessas de lavar...?

O que acham vocês de uma surpresa?”

Concordam todos e, como é natural,

vão insistir sobre o que querem ganhar...

E chega a máquina em casa, com certeza!

A GOVERNADORA IV

Ou ela só menciona, simplesmente,

que a vizinha pretende logo se mudar;

com um empréstimo do banco, vai comprar

uma casinha, para ter lar permanente...

“Esse aluguel que eles pagam, mensalmente,

irá servir para a prestação pagar,

em investimento para o próprio lar...

Vou sentir falta... Sou amiga dessa gente...”

E o marido enfia a cara no jornal,

como quem não está dando a menor bola,

mas vai até um banco se informar...

E depois diz à mulher, com natural

orgulho, após trazer os filhos da escola:

“Sabes? Pensei em uma casa financiar...”

A GOVERNADORA V

Naturalmente, finge surpreendida estar

com a bela ideia que teve seu marido;

e começa a objetar: “Porém querido,

será que a gente vai conseguir pagar...?”

E o maridão começa a se gabar:

“É que eu pensei nesse aluguel perdido...

O pagamento em seu lugar será atendido

e a gente está comprando o próprio lar...”

“Meu querido, mas que ideia boa tiveste!...”

“Ora, meu bem, que bom que concordaste;

ontem pensei em precisar te convencer...”

“Mas tens certeza? Será que te informaste?”

“Passei no banco para fazer um teste

e um bom empréstimo vão nos conceder!”

A GOVERNADORA VI

E assim ela vai levando a vida,

ingenuamente, apenas na aparência,

pois de seu lar mantém plena intendência,

dando ideias devagar, muito contida...

E dessa forma, gentil e comedida,

de seu marido supera a indolência,

sem permitir que jamais tome consciência

de que ela é quem governa, decidida!

Porque de fato, mesmo a mais ignorante

das mulheres consegue dominar

o mais inteligente dos maridos!...

No seu dedinho mínimo, constante,

facilmente dá um jeito de o enrolar,

branda rainha dos desejos concedidos!

DIVINA OPERAÇÃO I – 18 ABR 14

Quando Deus criou o homem, foi pretexto

para a real formação de sua existência;

esperou alguns anos, com paciência,

até a forma completar de seu contexto.

A Adão adormeceu, com simples gesto

e uma costela tirou-lhe, com ciência,

e dos cinco sentidos da experiência

criou alguém que já nasceu com o sexto...

Sem dúvida melhor, em sua beleza,

capaz de transmitir melhor herança

do que o trabalho de que o homem tem mister.

E foi assim que coroou a Natureza,

antes só verde, em cor rosada de esperança,

para instalar a sua semente na mulher!...

DIVINA OPERAÇÃO II

Por isso o homem é forte em seu orgulho,

mas de fato, quem domina é sua mulher;

essa costela não lhe fez falta sequer,

nem provocar em Adão qualquer esbulho...

Na Idade Média, o monacal entulho,

a Escritura extrapolando como quer,

afirmava não haver homem qualquer

com vinte e quatro costelas no refolho...

Mas que tinham vinte e três e um esqueleto

com vinte e quatro deveria, certamente,

pertencer a algum cadáver feminino;

qualquer discórdia mantida em dom secreto:

não se pensasse que um santo, infelizmente,

tinha um defeito no arcabouço masculino!...

DIVINA OPERAÇÃO III

E era por isso proibido autopsiar

qualquer cadáver, por ser profanação

da imagem de Deus, nessa ocasião,

como se fosse possível Deus cortar!...

Naturalmente, se de fogueira o estalar

mostrasse outra costela, sem razão,

era que o herege estava em possessão

diabólica, para os crentes enganar!...

Desta forma, melhor era enterrar,

muito depressa, quem morresse assim,

antes que a caixa torácica surgisse!...

Só em grandes piras os mortos a cremar,

após batalhas e pestilência, enfim,

antes que a morte ver costelas permitisse!

DIVINA OPERAÇÃO IV

Pois é claro que a feminina criação

se destinava a perpetuar a raça;

uma costela tinha a mais, que abraça

o feto inteiro, durante a gestação!...

Não ponho em dúvida que o infeliz Adão

fosse operado, para que Eva se faça;

nas Escrituras, porém, nada perpassa

que cada homem recebesse igual missão!...

A Costela Vinte e Quatro era a intuição,

que do homem então passou para a mulher,

ficando ele apenas com a razão

dedutiva ou indutiva que se quer,

para a ciência levar à brotação,

sem em nada contrariar a religião!...

FOTOGRAFEIAS I – 19 ABR 14

A imagem que o espelho me reflete

não é a mesma que aparece em meus retratos;

nem sei qual delas corresponde aos fatos,

se é a luz do flash que ante mim se intromete

e os olhos pisa enquanto a luz inflete,

enquanto para o espelho, em fortes tratos,

eu olho com firmeza e, como os gatos,

o olhar desvio do brilho que me afete!

De quando em vez, somente, surge a imagem

que o diafragma da pálpebra conforma

e pelo vítreo humor é revelada;

então, digitaliza o olhar visagem,

meu sentimento em obturador se forma

e de algum modo, sobre a chapa é projetada!

FOTOGRAFEIAS II

O fato é que não sei ser fotogênico

quando esse flash se esbate em meu olhar;

alguma sombra é precisa no acentuar

destes meus traços, em melhor instante cênico.

Diante do espelho, tenho o rosto calistênico,

meu eu interno assim a revelar;

porém quando essa luz vejo espocar,

o meu aspecto se torna mais esplênico.

Também evito tirar fotografias,

pois sempre treme a minha mão ao apertar

o botãozinho ou alavanca necessários

e imagens trêmulas então somente vias,

resultado talvez deste acanhar,

ante meus próprios retratos tão nefários...

FOTOGRAFEIAS III

O fato é que raramente reconheço

meu próprio rosto nas fotos retiradas,

mesmo que fotos armadilhas são, pesadas,

pois pedaços de minhalma ali esqueço;

então, que me “foteiem” nunca peço,

por que alma e cara não fiquem esgarçadas

ou que semanas me tirem, compassadas,

da expectativa de vida que despeço!

Pois quanto menos fotos eu tirar

será mais longo o tempo de minha vida,

mesmo que a foto seja apenas um reflexo

sobre meu rosto dessa luz solar

que, num instante, me tome de vencida

e se imprima, a fingir ser meu próprio nexo!

OUTONO I – 20 ABR 14

AS FOLHAS AMARELAS

PAPEL CREPOM

CAEM DANÇANDO NO MAIS AMÁVEL SOM

UM FARFALHAR DE TODAS AS PROCELAS

DO VENTO RELUTANTES CONCUBINAS

QUE, APÓS POSSUÍ-LAS, AS ABANDONA ÀS SINAS

DE TERRA SEREM DE SEREM TERRA

VIRANDO HÚMUS HÚMUS VIRANDO

A TERRA NEGRA A NEGRA TERRA

QUE NOS VALES SE ACUMULA E NÃO NA SERRA

E POR MAIS ALTO QUE UMA ÁRVORE SE ELEVE

POUCO SE ATREVE

A VOAR TÃO LEVE

COMO AS FOLHAS QUE O VENTO LHE ROUBOU

OUTONO II

FOLHAS VERMELHAS

INTESTINAIS

DOS EUCALIPTOS TOMBAM COMO FACAS

UMA A UMA DAS FOLHAS TU DESTACAS

DEDOS DE VENTO COMO RENDAS OUTONAIS

DA GEADA FEITA DAS LÁGRIMAS DAS VELHAS

NO AR FLUTUAM FLUTUAM NO AR

ADAGAS LISAS LISAS ADAGAS

A PROTESTAR A PROTESTAR

NESSE ZUNIDO QUE PARECE A VOZ DO VENTO

MAS QUE É O UIVO DAS FOLHAS A GEMER

DO TRONCO LENTO

LENTO DESCER

COMO NO SOLO TOMBA CADA SOMBRA

OUTONO III

CRISTAIS DE GELO

CLAROS PINGENTES

QUE SE PROJETAM À SOMBRA DAS JANELAS

IGUAIS QUE AS FOLHAS CATIVAS DAS PROCELAS

TORNO PUNHAIS AS PALAVRAS QUE CONGELO

COMO SE ENTRASSEM NA CARNE INDIFERENTES

APENAS QUEBRAM QUEBRAM APENAS

NÃO SE DERRETE IGUAL CONFETE

GELO EM CONFETE CONFETE EM GELO

ÁGUA SANGRANDO COMO ESTALACTITES

VIÚVAS LÁGRIMAS DAS ESTALAGMITES

SÓ ME AMEAÇAM

SEM QUE DESFAÇAM

OS RAIOS DIAGONAIS DO SOL DE OUTONO.

OUTONO IV

CRISTAIS DE FOLHAS

VERDENCARNADAS

COM MAIS FREQUÊNCIA VERDEAMARELADAS

REFLETINDO AS SETE CORES DIFRATADAS

PELO ARCO-ÍRIS EMBAÇADO COM QUE TOLHAS

O REDEMOINHO DE TRISTEZAS COMPASSADAS

O AR SUSPIRA SUSPIRA O AR

E A FOLHA GIRA E GIRA A FOLHA

E O CHÃO SE ENCHE ENCHE-SE O CHÃO

DESSA VALA COMUM DESPETALADA

FOLHAS E SÉPALAS FEITAS QUASE EM NADA

SEM SALMODIA

VELÓRIO OU VIA

TALVEZ EU SEJA, ENFIM, SUA CARPIDEIRA

OUTONO V

POIS CAI O VENTO

IGUAL QUE AS FOLHAS

E PRENDE EM SI O TOQUE DO MORMAÇO

TODA A UMIDADE TOMA EM SEU ABRAÇO

E O AR INTEIRO EM TURBILHÃO DESFOLHA

ENQUANTO MORRE A LUZ DO CATAVENTO

ESTOU ATENTO ATENTO ESTOU

VENTO ME CHEGA CHEGA-ME VENTO

DO BELO OUTONO DO OUTONO BELO

E ROÇA EM MIM A DESFOLHAR TAMBÉM

QUANTOS CABELOS E DENTES QUE SE TEM

COLAR DE FOLHAS

CRINA E MARFIM

E SOB AS FOLHAS TAMBÉM SE DORME ENFIM

OUTONO Vi

Branca umidade

Negras calçadas

Do lado norte em que não deita o sol

Durante a maior parte da manhã

Uma calçada alegre e outra vilã

Entre montinhos de folhas enroscadas

Toldando passos passos toldando

Gaiolas cinzas cinzas gaiolas

Ao pé incauto ao incauto pé

Querem fazer-me penetrar nas tijoletas

COrrupios úmidos de missões secretas

Mas me desvio

Até do outono

Sob as cobertas de marfim do sono

TRIÃNGULO SEM BERMUDAS I – 21 ABR 14

Tanto o mistério rebatem os jornais,

Certas revistas repetem até demais

Sobre o impossível Triângulo das Bermudas,

Que não existe, se com cuidado o estudas.

Só a multidão caprichosa dos eventos,

Compilados por jornalistas pachorrentos.

Que nem ao menos buscaram pesquisar

Onde o navio acaba de afundar!

Se foi no Oceano Pacífico ou no Índico,

Mas se comportam qual prepotente síndico.

E logo realizam um salto quântico,

Colocando o naufrágio em pleno Atlântico!

Não interessa se afundou na Groenlândia

Ou mais ao sul que a própria Falklândia.

Congregam todos no espaço do triângulo,

Que se tornou já em polígono ou quadrângulo!

Não interessa se o barco já chegou

Mesmo atrasado, ao destino em que aportou.

Apenas cresce a lista um pouco mais

Para encher colunas vagas dos jornais!...

TRIÃNGULO SEM BERMUDAS II

Naturalmente, esse avião foi encontrado,

Dentro dele o esqueleto descarnado

Do piloto que originou a história inteira,

Ao proclamar a sua mensagem derradeira

De nenhum ponto do lugar reconhecer,

Nem em sua cartografia perceber!...

Surgindo assim o início do mistério

Da esquadrilha perdida – assunto sério!

Mas encontraram, afinal, seu aeroplano,

Na Terra Nova, no fundo do mar plano...

Nada mais que um grande erro na sua rota,

Morte causando e a sua final derrota!

Mas cada vez que um jornalista quer assunto,

Já ressuscita esse Triângulo Defunto!...

Pretendendo não saber a solução,

Pois aumentar a tiragem é sua missão...

Quem quer saber se o mistério foi furado?

Quem vai comprar o jornal do ano passado?

E desta forma a tal mentira perpetua:

Morra a verdade e então viva a falcatrua!

TRIÃNGULO SEM BERMUDAS III

No antigo tempo, a enfrentar o Mar-Oceano,

Muitos perigos mencionavam nesse plano.

Havia a Montanha Ímã, que arrancava

Todos os pregos de uma nau que a enfrentava!

Havia a Mão Negra, que surgia do profundo

E a caravela arrastava para o fundo!

Haviam sereias, com vozes voluptuosas,

Que os marinheiros devoravam, capciosas.

Havia o Leviathan, que ser ilha aparentava

E afogava quem quer que ali aportava.

Mas sobretudo, havia o Mar dos Sargaços,

Do Oceano Atlântico a preencher largos espaços!

E qualquer barco atraído a tal lugar

Retinha firmemente, para nunca mais soltar!...

Lendas contavam sobre o Reino Proibido,

Dentro do Mar dos Sargaços constituído...

Queriam os Normandos salvaguardar suas rotas

Comerciais da intrusão de outros idiotas!

Como ainda hoje salvaguardam os jornais

Vendas nas bancas com suas lendas imorais.

TRIÃNGULO SEM BERMUDAS IV

Claro que existe triângulo de bermudas,

Mas sem mistérios ou quaisquer tragédias mudas.

No baixo ventre, um tanto após o umbigo,

Entre as virilhas, ali avistar até consigo.

Delineado com uma certa claridade,

Por movimentos de maior intensidade.

Logo acima das pernas, em suas cavas,

Porém abaixo do cinto, com suas travas...

Mas um idêntico triângulo se avista

Em calças longas ou por entre shorts dista.

Para surgir, de bermudas não precisa,

Sob os biquínis, vem de forma mais concisa.

E sem as roupas, contemplando a forma nua,

Um triângulo bem real ali flutua.

Antigamente, mostrando finos pelos,

Hoje raspado muitas vezes, com desvelos...

Belo triângulo para a vida consagrado,

Mui diverso desse outro, amaldiçoado!...

Mil naufrágios causando, certamente,

Quando se esbate nos escolhos de outra gente...

TANGUÉDIAS I – 22 ABR 14

letras de tangos desdobram-se em tragédias

desses amores nos sofridos desenganos,

até há cabelos a bordar em brancos panos,

ainda que alguns com laivos de comédias,

como o potrilho,

que perde a cancha,

focinho em mancha,

no fim do trilho,

enquanto dançam os netos de ciganos

e as pernas giram em vestes ludopédias,

antigamente afrontando classes médias,

hoje comuns até nos lares castelhanos...

TANGUÉDIAS II

com rostos sérios de estátua, bailarinos,

trocando passos em figuras consagradas,

bem pouco os braços, só as pernas são roçadas,

na sugestão de outros ritos fesceninos,

abre-se a saia,

a coxa surge,

o tempo urge,

em palma e vaia.

não mais restrito aos bares pequeninos

de La Boca, onde escondiam tais agrados,

dançam os homens bem empertigados

e elas lançam para trás cabelos finos...

TANGUÉDIAS III

porém tocado em um velho bandoneão,

os foles a insuflar, talco no couro,

instrumentistas a sacudi-lo, sem desdouro,

sobre o colo a estender lenço de mão,

que assim evitam

sujar as calças,

proteções falsas,

botões agitam...

gaitas-piano é que hoje tocam tal bordão,

pois já se foram para alheio viradouro

aqueles velhos, com seu toque de ouro,

que na La Boca dos céus acham salão...

TANGUÉDIAS IV

foram depressa acrescidos violinos

e contrabaixos, depois violoncelos,

acompanhado por tais gemidos belos

o choro altivo dos bandoneões ladinos.

grandes salões

tem mais espaço,

tocam tangaço

com ampliações.

e Piazzola, com seus dotes peregrinos,

na orquestração compôs seus mil castelos,

com flautas e pistões, novos apelos,

marimbas a imitar toques de sinos...

TANGUÉDIAS V

ainda se encontram os cantores entonados,

vestindo ternos, lenços nos pescoços,

a maioria fingindo serem moços,

por bailadeiras ainda apaixonados,

que coisa triste

nas cem figuras,

tragédias puras

na dor que existe,

como se fossem esqueletos retornados,

penteados para trás, sem mais retoços,

no fim da noite retornando os passos,

por curtas horas somente libertados...

TANGUÉDIAS VI

pois esse tango de hoje é o dos turistas

que a Buenos Aires vêm, em excursão,

e então retornam, tomados de exaustão

dessa pobreza que hoje em dia lá avistas.

gentes antigas

vendem suas louças,

enquanto as moças

choram cantigas.

mas se aos tangos amar ainda insistas,

pega esses discos de acetato e em rotação

os mortos cantam e vivos ainda estão,

de cada vez que em toca-discos os visitas.

ESPINHO NÃO FERE ROSA I – 23 ABR 14

NENHUMA ROSA

FERE A SI MESMA

NO ESPINHO QUE FAZ BROTAR DO PRÓPRIO CAULE

QUE SÓ A PROTEGE

DA MÃO ALHEIA,

ESTA SIM, A FERIR PROFUSAMENTE,

ENQUANTO O SANGUE

ESCORRE E PINGA

RESPINGA RESPINGA

VINGA VINGA

...VIM VIM...

PARA NEGAR A IMPORTÂNCIA DO SONETO

QUE PARA MIM SEMPRE FOI VÍCIO SECRETO

E APENAS RITMO

DE AMOR À RIMA.

ESPINHO NÃO FERE ROSA II

EMBORA ESPINHO

DE ALHEIO CAULE

FIRA TÃO FORTE QUANTO FOSSE AGULHA

E ENTÃO PERFURA

COM PONTA DURA,

DEIXA NA PÉTALA SEU FURO PERMANENTE

ENQUANTO A ROSA,

FIEL ESPOSA

DESPOSA DESPOSA

ESPOSA ESPOSA

...E POSA E POSA...

COMO VEDETE OU MUSA DE REVISTA

ÚMIDO BRILHO, BREVE SUA CONQUISTA

DO TEU OLHAR

SEM TE ESPINHAR.

ESPINHO NÃO FERE ROSA III

TUDO DEPENDE

DE SUA DISPOSIÇÃO:

NÃO QUER SER ROSA PARA SER POSTA NUM VASO

NEM QUE O ESPINHO

CRAVES NO PINHO

COMO CABIDE PARA O VASO PENDURAR

QUER SER JARDIM

VENDO O JASMIM

A NAMORAR A NAMORAR

MORAR MORAR

...NO MAR NO MAR...

DA VERDE GRAMA QUE DELA SE APROXIMA,

QUE O JARDINEIRO A SEU REDOR CAPINA

COM SEU ANCINHO

PUXANDO ESPINHO.

ESPINHO NÃO FERE ROSA IV

SERÁ QUE A ROSA

FERE O ESPINHO

E QUEBRA A GARRA NO SEU DESPETALAR?

COMO COROA,

PRESAS A TOA

DE CADA SÉPALA PRENDE-SE UM COLAR

PÉTALAS RUBRAS

DE SANGUE LÚBRICAS

A PENDURAR A PENDURAR

O PERFUMAR O PERFUMAR

...NO AR NO AR...

E QUANDO O ESPINHO É QUEBRADO PELA SÉPALA

A SEIVA ESCORRE, MANCHANDO CADA PÉTALA

NA RIMA POBRE

QUE O VERSO ENOBRE.

ESPINHO NÃO FERE ROSA V

MAS QUANDO ESPINHO

PERFURA A CARNE

PERCORRE AS VEIAS ATÉ A JUGULAR

E ALI SE PRENDE

E A ARTÉRIA RENDE

COMO UM TIÇÃO VERMELHO A RESPINGAR.

BREVE CENTELHA

QUE HEMÁCIA ESPELHA

A REBRILHAR A REBRILHAR

BRILHAR BRILHAR

...SEM PAR SEM PAR...

E ENTÃO O SANGUE PELO ESPINHO SE ENAMORA

E CARNE E ROSA UMA SE TORNAM NESSA HORA

ATÉ QUE MURCHE

TODO O DESEJO.

ESPINHO NÃO FERE ROSA VI

MAS QUANDO A ROSA

SE ABRE AO ESPINHO

LÍQUIDA FERVE NESSE MEIO PERFURAR

E ALI SE ALEITA

A ESPINHO AFEITA

SÉPALAS RÓSEAS PARA AS PÉTALAS RASGAR

EM ANDROCEU

E GINECEU

TAMBÉM SOU TEU TAMBÉM SOU TEU

POBRE ROMEU POBRE ROMEU

...ATEU ATEU...

DA RELIGIÃO AMARELA DOS ESTAMES

QUE NO PISTILO FECUNDAÇÃO PROCLAMES

QUANDO OUTRA ROSA

NASCE DE MUDA.

ALCAÇUZ I – 24 ABR 14

EU BUSCO O DOCE

de estar contigo pela noite inteira,

quando se esvaia minha gota derradeira

QUAL MORTO FOSSE

O AÇÚCAR BUSCO

na bela doce do mais doce beijo,

na peregrina flor do teu adejo

NO LUSCO-FUSCO

QUERO O PAPEL

desenrolar aos poucos, com cuidado,

enquanto me reclino do teu lado,

EM DOCE ANEL

POIS NÃO MASTIGO

a bala bela deverá ser derretida

e contra o céu da boca bem querida

EM MEU PERIGO

TALVEZ EU SEJA

nessa tua boca doce de alcaçuz

somente a língua que em torno à tua pus

LÍNGUA QUE ADEJA

EU BEM QUERIA

ser para ti também doce dileto,

guardado quente no lugar secreto

DA SINFONIA

CANTAR DE MEL

em meu dueto, no qual me correspondas,

os dois a palpitar nas mesmas ondas

SOB UM DOSSEL

E ASSIM DORMIR

até que o Sol dissolva o meu melaço

a pouco e pouco separando teu abraço

SEM NOS FERIR

ALCAÇUZ II

ENCONTRO EM TI

quando provo a doçura de tua calda

enquanto as mãos arranham minha espalda

O SOM DO COLIBRI

ENCONTRO ALI

enquanto saboreio o caramelo

que se derrete no teu corpo belo

O BEM-TE-VI

E ENTÃO SE QUER

após te haver despetalado inteira

tirar de ti a pétala solteira

DO BEM-ME-QUER

NÃO VOU FRAUDAR

quando arrancar as pétalas da flor

para melhor garantir o teu amor

SEM TRAPACEAR

EM BRANDO MEDO

talvez em conte como pétala o caroço

para o caule jogar bem fundo ao poço

COM MEU SEGREDO

NÃO MINTO AGORA

mas as plumas de meu dente-de-leão

eu soprarei, em brando turbilhão,

SEM MAIS DEMORA

E OS PARAQUEDAS

pela brisa malévola espalhados

desejarei que se façam dourados

NAS NOITES LEDAS

ASSIM EM TI

darei um beijo melhor que o beija-flor

sedento pelo néctar da flor

QUE UM DIA EU VI

ALCAÇUZ III

E A BORBOLETA

enviarei para ser a mensageira

em flor se transformando, bem ligeira,

NA OCULTA GRETA

E O CARACOL

deslizará com seu rastro luminoso

teu nome desenhando em tom fogoso

À LUZ DO SOL

E MESMO O GRILO

a minha canção entoará da partitura,

sem cricrilar em ária de loucura

TRIGO NO SILO

E O GAFANHOTO

apenas saltará feito esperança,

ingênuo como sonho de criança

SORTEANDO A LOTO

E A POMBA-ROLA

a minha flauta arrulhará entre teus seios

porque tocá-los meus dedos têm receios,

COISA MAIS TOLA...

E COMO ARANHA

a minha teia lançarei à captura

do doce de alcaçuz de tua alma pura

QUE A MINHA LANHA

QUAL ESCORPIÃO

sem pretender mandar-te meu veneno

irei lançar-te o mascavo mais ameno

COM MEU FERRÃO

E NA PANELA

a calda ferve e gira acalentada

por meu amor sempre mais configurada

QUE AS BOLHAS VELA

RESQUÍCIO DE SONHO I – 25 ABR 14

O meu sonho é um tapete voador

que firme pousa ao lado de teu leito;

vejo teu corpo desnudo e sem defeito

e mal consigo reprimir o meu ardor.

E como o sonho é meu e sou senhor,

no meu carinho, bem junto a ti me deito

e nosso amor se faz puro e perfeito,

enquanto o sonho preserva seu calor.

Ouço um ruído e fujo ao despertar:

não esgotei ainda meu desejo,

cada centímetro de ti eu não beijei!...

Mas este é um sonho que não posso controlar;

com o antebraço, os olhos eu protejo

e a contragosto em tal instante despertei...

RESQUÍCIO DE SONHO II

Por que não pode o sonho ser perfeito,

como é perfeito sempre o devaneio?

Por mais que seja de meu real alheio,

meu sonho às claras é completo e sem defeito.

Porém nos sonhos do recôndito do leito,

depois que o sono me enlaça de permeio,

correm os fados tão somente pelo meio

e ao entrecortar do sonho me sujeito...

O devaneio, que componho a meu talante,

controlo mais, mas sei não ser real,

enquanto o sonho, enquanto dura, é pleno,

nesse entremeio firme é dominante

meu inconsciente, por força natural

dessas culpas com que a alma me enveneno.

RESQUÍCIO DE SONHO III

Assim o sonho se interrompe, caprichoso,

nesse momento em que mais queria durasse,

como se o Id de meu Ego ali zombasse

e então negasse o meu desejo voluptuoso...

Porém o sonho concebo mais formoso

nesses momentos que a modorra conservasse,

sem permitir-me que tudo terminasse,

antes do fim do instante mais ansioso...

E é nesse brilho e calor que me balanço:

prendo entre as pálpebras o menor resquício

desse sonho tão ousado e fugidio!...

Vendo que nesta realidade não alcanço,

para meu bem, ou vício, ou malefício,

senão meu sonho zombeteiro e escorredio!...

sem ilusões I – 26 abr 14

amor procura ser força inovadora

a cada vez que para nós se apresta,

nas nuvens a marchar, em plena festa,

da natureza, por igual, renovadora.

nessa loucura da imagem sedutora,

macia calçada de agreste nos pés testa,

novas ideias sobre a cabeça encesta,

a vida inteira redourada nessa hora!

quem não conhece a sensação do amor?

essa impressão que parece irá durar

eternamente, pela primeira vez...

mas quando volta amor ao coração,

já se imagina o final da sensação,

tão desgastada quanto um dia já se fez...

sem ilusão II

andei fugindo aos sonetos nestes dias;

outros formatos puxaram-me as orelhas,

sem repetir mil ressonâncias velhas

de outros versos de parelhas elegias...

amor retorna em novas harmonias,

mas se recebe com arquear de sobrancelhas,

cravou-se a seta, porém se olha de esguelhas,

nessa lembrança de antigas nostalgias...

já não se espera que seja imorredouro

esse amor que antes se viu ser transitório,

quando era o espírito um elfo inexperiente...

mas nem por isso se despreza tal tesouro,

que então se afirma com seu vezo peremptório

e nos domina de novo, integralmente...

sem ilusões III

tem-se certeza de que a vaga passará,

a maré mãe de todo o baixamar,

a ilusão tão fagueira a nos deixar,

que a praia cheia de algas mortas ficará.

mas a lembrança jamais esquecerá

a brasa morta como um rubi sem par,

verde esmeralda a nos acompanhar,

no puro espanto que a memória lembrará.

e a sensação do exultante caminhar,

entre o calor perfumado dos hormônios,

quem conheceu sempre a pode relembrar,

mas sem íntimo ardor, pois a ilusão

que nos aquece à luz dos feromônios

há de ir embora, sem mostrar-nos compaixão.