O pequeno tratado dos sabores
Todo o lugar aqui é doce
Como se fosse melado
Rosado por demais da conta
Como bochecha de vedete
— Cuidado com o diabete!
Muito chá com bolachas,
Baba de moça, rabanada
Por demais água com açúcar,
Café com leite, marmelada
— Tanta letra confeitada...
Tanto bom bocado com rimas
E beijinhos e suspiros
Olhos de sogra, irmãs e primas,
Puxa-puxa, lambe ouvido
— Ô abre alas para o ardido!
Que é para mover a trama,
Incendiar a cama e os amantes
Coloque um pouco por semana
Dessas trovas soltas, picantes!
— E nada será como antes
Pimenta do reino ou malagueta,
Quem experimenta faz careta
Quem faz marra e tem gastura
Quebre os dentes na rapadura
— É sabor que dá calor, tontura!
Frescura é não provar,
Criar combinações, maliciar
Mas não há espaço para invenções
Se não forem açucaradas...
— Ô abre alas para as salgadas!
Aquelas de paladar humano
Destemperadas do divino
Algum mocotó, algum tutano
Varie o cardápio ao longo do ano
— A lira só pega gosto ensalmourando
Um pouco de carne de sol,
Um pouco de bacalhau
Não faz mal descombinar
Apertar o verbo com sal
— E para o frio, sopa. Que tal?
Espetinho de soneto
Redondilha com ervilha
É maravilha o poemeto
Refogado com lentilha
— Lembre-se. Azeite bem o cedilha!
Que apetite tem o papel
Quando o traçado sai ledo?
Não, não ponha tanto mel
Besuntando todo o enredo
— Ô abre alas para o azedo!
Avinagra o pronome
Põe salsão pra dar um cheiro
Vai agradar quem está com fome
Não é preciso exagero
— Comeu tudo menino inzoneiro?
Aproveite o mau humor do leite
Em seu azedume, faça coalhada
Pedacenta e esbranquiçada
Consagrada ao teor flácido
— Ô abre alas para o ácido!
Dulçor de morango não é rubor
Tão pouco laranja o esbanja
Saberia o abacaxi ser doce
Se o limão também o fosse?
— Meu chapa, veja o que eu trouxe
Acerolas mais que fresquinhas
Cor de amarelo-sem-embargo
Não zombe dessas frutinhas
Senão vai ter com vô Aspargo
— Ô abre alas para o amargo!
É o menos sociável
É o menos popular
O amargo é assim
Não veio pra mimar
— O que faço pra ressaca passar?
Chá, mas de boldo, losna, carqueja
É só ferver e dar um gole
Tome logo, ora pois, ora veja
Depois, limpe isso e não me amole
— Vida de boêmio não é mole!