Anastasia Abrahamsen: Uma extravagância

(A Beatriz Uchôa)

[Nota do autor: Parte autoparódia, parte tributo à obra do grande Edgar Allan Poe e parte saborosa in-joke, no que um falhar o outro o sustentará.]

“No bugaboo tales – such as this.”

(“THE PREMATURE BURIAL”)

I

É um primor, leitores meus, ser brasileiro;

Terra de cores, sabores, alegrias,

Onde no céu resplandece o Cruzeiro

E singra o sabiá pelas aéreas vias –

Ao terminar sua excursão, prazenteiro

Encanta a todos com suas doces melodias

Tal como encantou a Dias e outros mais

Ilustres conterrâneos meus – meus ancestrais!

II

Mas mesmo esta linda terra de palmeiras

Oculta um defeito crasso, imperdoável:

Entra ano, sai ano, nossas moleiras

Cozinham sob este Sol insuportável,

E nem mil sabiás cantantes, mil palmeiras,

Aliviam-me esta ordália detestável

De enlanguescer neste clima infernal

De meu país abençoado – e tropical.

III

Portanto, ó Musa, se me tendes compaixão,

Carrega meu verso em tuas asas velozmente

Para longe deste maldito verão,

Bem longe deste Sol perpétuo e inclemente;

Trazei de meus cantares a inspiração

Dum lugar a alguém como eu mais condizente:

Um lugar onde, inclemente e eterno,

É – não o Sol do verão, mas – o frio do inverno.

IV

Vejamos… Sem lhe abusar da boa vontade,

Leva-me, querida Musa, a Christiania –

Até onde sei, é uma encantadora cidade

Numa terra inspiradora – e estranha,

Onde os velhos deuses pagãos em liberdade

Ainda têm influência nada tacanha

E até mesmo o mais afrescalhado senhor

Tem como ancestral algum Viking de valor.

V

Sim! Nesta terra, de fiordes e geleiras,

Delineia, Musa minha, minha estrada –

Preenchei meus olhos (e páginas inteiras)

Com histórias desta cidade gelada

Sem (graças a Deus!) sabiás ou palmeiras,

Até que por fim encontre a apropriada –

Ah! Que oportuno! Um conto que me apetece!

É falar no diabo… e ele aparece!

VI

Existe cá, desde tempos imemoriais,

Um slottet de antiguidade incalculável;

Uns querem datá-lo das eras medievais –

Já outros, em conjetura mais improvável,

O creem datar dalgum tempo ainda mais

Primevo, antediluviano, inexpugnável:

Ou algum nume celeste o construiu,

Ou, antes do Orbe existir, já existiu.

VII

E desde que o velho slottet existia

Por vetusta família foi ocupado.

De sua linhagem, porém, ninguém sabia,

Tampouco como o clã fora agraciado

Com aquela descomunal moradia;

Nada havia escrito sobre seu passado

(Uma linha!) nos registros da História,

E menos que nada nos mares da Memória.

VIII

Só uma coisa a seu respeito era sabida:

Fosse por trabalho honesto ou por ardis,

Desde sempre era a família conhecida

Pela corte e a Coroa do país,

Sendo magnificamente retribuída

Por seus serviços (se nobres ou se vis,

Só Deus o sabe) – acabando bem abastados

Após milênios de lucros conquistados.

IX

Entre honrarias, pompas, opulência

Por incontáveis anos o clã viveu

Até que a insaciável boca da Decadência

Sua deslumbrante árvore corroeu –

Me ipso teste! Nobreza e indolência

Nunca formam um bom par… E, assim, morreu

Dos ABRAHAMSEN o astro outrora brilhante,

A glória relegada a um passado distante.

X

No castelo ruinoso, atualmente,

Uma só pessoa – e ninguém mais – morava;

Dos Abrahamsen a única descendente,

Anastasia, leitor, é como se chamava.

Sua vida, ano após ano, lentamente

Semper eadem gota a gota se escoava,

E nada lhe dava tamanha alegria

Afora seu inalterável dia a dia.

XI

Era Anastasia uma singular menina:

Ao vê-la, o moroso Anjo da Melancolia

Pousou em seu berço, ainda pequenina,

E talvez por algum amor que lhe sentia

Proclamou-lhe: “Minha irmã serás em sina!”

Desde então, jamais houve sequer um dia

Em que o júbilo viesse visitar

A introvertida garota em seu lar.

XII

Presenteavam-na com jogos e brinquedos,

Com os quais pouco (ou melhor, nunca) brincava;

Em ocasiões festivas, dos folguedos

A alegria geral não compartilhava,

E ao decorrer dos dias menos frios e ledos

Na enorme biblioteca se trancava

E lia da manhã até o anoitecer,

Quase sempre entre os livros vindo a adormecer.

XIII

E o que lia a menina? Contos de fadas,

Os bons e velhos contos tão sacarinos

Sobre príncipes, donzelas encantadas

Que apetecem a todos os pequeninos?

Ah…! Suas leituras eram diferenciadas –

Contraposta às meninas e aos meninos

De sua tenra idade, nada a seduzia

Mais do que velhos romances – e poesia.

XIV

De todos, porém, quem mais admirava

Era Edgar Poe (mas que grande surpresa!) –

Por horas com veneração o folheava

Degustando sua mórbida beleza,

E em seu feminil coração palpitava

Ainda em sua primavera uma certeza:

“Quando adulta hei de ser sábia e bela,

Mais até do que Ligeia ou Morella!”

XV

E o tempo fez o que de praxe faz: passou.

Nossa Anastasia a olhos vistos cresceu

E, bem ou mal, seu sonho se concretizou –

Moldada pelas negras páginas que leu

Uma linda, fantasmal mulher se tornou,

E o bom e velho mal do século preencheu

Sua cabecinha com mórbidos pensamentos

Cutucando-a seja em bons ou maus momentos.

XVI

Ora Werther, ora Onegin ou René,

Mil vezes ao dia seu ânimo mudava:

Se num minuto era morosa e blasé,

No outro a imaginação se lhe inflamava –

Fosse onde estivesse, punha-se de pé

E por papel ou uma tela procurava…

Escrevia versos funestos, decadentes –

Pintava cenas loucas, incongruentes!

XVII

Monstros, cemitérios, paisagens letais

Em seu cérebro perturbado abundavam;

Portentos de morte, sigilos fatais

Por onde a vista lhe estendia fervilhavam;

Sonhos agitados, delírios mortais

Seu sono, à noite, vez por outra perturbavam –

Quem por acaso o castelo visitasse

Isto veria, onde quer que se voltasse,

XVIII

Nos quadros por toda parte pendurados –

Nos livros de sua coleção incontável –

Nos versos e caracteres rabiscados

Em seus papéis, de cunho indecifrável –

Nas estátuas e adereços comprados

De regiões de procedência inominável –

Resumindo a quem tem preguiça de ler,

Era ela um Des Esseintes em forma de mulher.

XIX

“Mas… e se por acaso, algo revirasse

A vida tão regrada de nossa heroína?

E se, só por um dia, alguém abalasse

Todo o mundo conhecido da menina?

E se alguma desventura alterasse

O pétreo cronograma de sua rotina?”,

Oferecendo tentadora inspiração

Questiona a Musa; como posso dizer “não”…?

XX

Era uma noite tão negra quanto chuvosa

Quando este peculiar conto aconteceu:

Do velho clã Abrahamsen a ruinosa

Morada igualmente estava imersa em breu,

Com exceção duma luzinha vaporosa

Que, num cômodo, Anastasia acendeu

Pois, como sempre o fizera todo dia,

Até que viesse o sono a arrebatá-la lia.

XXI

Frente a uma grande janela se sentava,

Donde a vastidão de seus domínios via;

Um de seus queridos tomos estudava

Enquanto a chuva, sem se incomodar, caía.

Do livro à janela os olhos desviava

Vez por outra em lânguida monotonia,

Lutando contra o sorrateiro soninho

E a vontade de ler só mais um pouquinho.

XXII

Eis que, porém, algo deveras peculiar

Espantou-lhe o sono – e a concentração:

Uma figura a parecia observar

Lá fora, tão pequenina, pregada ao chão,

Sem que a tempestade a viesse abalar –

Encarava-a com tamanha obstinação

Que, mesmo incapaz de discernir-lhe a face,

Sentiu como se algo a alma lhe transfixasse.

XXIII

Ora! Apesar de sua predisposição

A uma existência em total recolhimento,

Anastasia não tinha um mau coração

E detestava contemplar o sofrimento

(Exceto, é claro, nas páginas da Ficção).

Após refletir consigo por um momento

Disse: “Um pobre viajante em meus umbrais

Vem refugiar-se; é só isto, e nada mais.”

XXIV

Numa grossa capa escura se envolveu

E um par de galochas calçou num instante;

Com pressa mil lances de escadas desceu,

Preocupada com o pobre viandante,

Perguntando-se o que lhe aconteceu

Para que, em meio a tal chuva, saísse, errante,

E viesse a dar logo no slottet isolado

Que, usualmente, pelo povo era evitado.

XXV

A enorme porta do castelo então abriu,

Indo ao encontro do hóspede misterioso –

E eis que de perto, então, finalmente o viu,

Mas, sem saber se era ou não amistoso,

Um certo desconforto em seu peito sentiu:

Um capuz surrado ocultava, sigiloso,

Da figura membros, face, expressão,

E – pior do que estes – sua INTENÇÃO.

XXVI

Porém, como não era preconceituosa,

Por ignorar sua apreensão optou,

E disse-lhe a moça, educada e prestimosa:

“Por que e como em meus domínios aportou,

Ó peregrino, em tal condição lastimosa?

Se por bem o Fado aqui lhe enviou,

Saibas que hoje lhe cedo minha moradia,

Seguindo as velhas normas da cortesia.

XXVII

Tendes fome? Dar-te-ei algo de comer.

Ou tendes sono? Deixar-te-ei cá dormir.

Algum dinheiro posso lhe oferecer

Se tendes um lugar aonde queiras ir.

Sob meu teto esta noite hei de te proteger

Antes de deixá-lo, em meio à chuva, seguir.

Dos Abrahamsen não se põe a honra em xeque;

Queira entrar, por obséquio, e se seque!”

XXVIII

Ou por não ser habituada à cortesia

Ou por acometê-la estranha surdez,

A bizarra figura nada respondia,

Ali, estancada, em taciturna mudez.

Vendo que a seus gestos de paz não atendia,

“Queira entrar!”, disse Anastasia outra vez –

E outra vez foi como se falasse em vão:

Não alterava o estranho sua posição.

XXIX

Quase se arrependendo de sua bondade,

Anastasia em seu âmago quis voltar

Àquilo que bem conhecia: a soledade

E o aconchego de seu isolado lar.

Não o podia, no entanto – em verdade,

Algo naquele ser sentia lhe intrigar,

E ao mesmo tempo que queria rechaçá-lo

Algo a compelia a recepcioná-lo.

XXX

“O que explica esse teu medo, meu amigo?”,

A moça, entre pavor e tensão, retomou.

“Este teu estranhamento para comigo

É…” A frase, no entanto, nunca terminou.

Estranhamente, Anastasia jurou consigo

Que, consigo, o embuçado sussurrou

Uma palavra que nunca antes ouvira –

Um nome – o nome de alguém que nunca vira…

XXXI

“Disse algo?”, perguntou ela, assustada,

E com asco e desconforto percebeu

Que a figura, até então estoica e calada,

Sua rígida compostura perdeu:

Tremendo de êxtase, superexcitada,

Bradou: “És tu mesmo! És tu, Annabel!”

Com uma voz lúgubre, rouca, fantasmal,

Mais apropriada a um ente sobrenatural.

XXXII

“A morte achou que poderia a mim roubar

E destruir o nosso duradouro amor –

Mal sabe ela, porém, que jurei te buscar

No céu, terra, inferno – seja onde for –

E após por turbilhões de tempo navegar

Aqui estás!” Sempre em extático furor

Se contorcia e declamava o ser sombrio;

A pobre moça, chocada, não dava um pio.

XXXIII

Recuperando (em grande parte) a razão,

Tão logo pareceu se acalmar o ser,

Anastasia quis desfazer a confusão

E, tão logo o pôde, esforçou-se por dizer:

“Queira acalmar-te! Presta em mim muita atenção –

Não quero magoar-te, mas tenta entender…

Nenhuma Annabel conheço, ou conheci –

Tampouco SOU Annabel – nunca antes o vi…!”

XXXIV

O de capuz, não podendo ser aplacado,

Tornou à mulher: “Não brinques, Annabel!

Meus percalços nada tiveram de engraçado

Para que assim respondas, leviana, ao meu

Amor – mas conheço-a…! Não estou zangado –

Ainda mais porque trago comigo o teu

Retrato – aquele mesmo que me deste

Quando, louco, fiz-me crer que tu morreste.”

XXXV

Levando à nuca uma mão esqueletal,

Um antiquíssimo relicário tirou,

Oferecendo-o a Anastasia – que, afinal,

Compreendera o que ao estranho perturbou:

Sua namorada era exatamente igual

A si mesma! Estupefata, contemplou

Seus próprios traços faciais em miniatura

Naquela velha, mas bem-feita, pintura…

XXXVI

Seus cachos cor de corvo e delicados

Replicados foram com grande maestria;

O rosto pálido, os olhos amendoados

Também foram bem captados – bem o via;

O nariz aquilino – os bem-proporcionados

Seios – tão fiéis, que ela julgaria

Ter sido ela própria a servir de modelo –

“Ora! Mas como”, pensou, “poderia sê-lo!?”

XXXVII

“Por ora é mister este lugar deixarmos”,

Disse o de capuz, à garota acordando

De seu transe. “Tempo há para conversarmos

Tão logo partamos – pois vamos andando!

Passa da hora, Annabel, de nos casarmos

Após éons e éons por ti procurando –

E bendizendo aos deuses pela minha sorte,

Finalmente o vi – o amor conquista a morte…!”

XXXVIII

Até então minimamente tolerante

De toda aquela inexprimível loucura,

Anastasia, de fúria o rosto coruscante,

Bradou, ultrajada, à insólita figura:

“Basta, louco! De ti ouvi o bastante!

Daqui vais diretamente à sepultura

Se não deixares agora meu solar;

Jamais serás de novo bem-vindo em meu lar!”

XXXIX

Mas antes que esboçasse qualquer reação

Ou pudesse, de algum modo, se defender,

Com força a figura agarrou-lhe uma mão,

E sentiu a mulher seu corpo a tremer:

Feroz combate entre asco e submissão

Era travado, encarniçado, em seu ser,

E apesar de ser incapaz de o estudar

Sentia-se fulminada por seu olhar.

XL

“Meu cavalo aguarda não muito distante”,

Dizia o estranho enquanto guiava

Nossa Anastasia pela mão – relutante,

De frio e pavor a moça tiritava;

A tempestade até então tonitruante

Pouco a pouco sua potência amainava –

Mas pior que a chuva, em sua opinião,

Era o toque tão frio daquela ossuda mão.

XLI

E de fato, não muito longe, amarrado

A um enorme pinheiro antigo e frondoso,

Esperava a montaria do encapuzado.

Era o corcel mais bizarro e asqueroso

Que já havia Anastasia contemplado:

Parecia rir um riso horroroso

Deixando à mostra duas fileiras de dentes

Quais os de um cadáver – podres, repelentes.

XLII

Após libertá-lo, o estranho montou

Em seu mais estranho cavalo avermelhado

E sorridente; Anastasia o acompanhou,

Sempre à mercê daquele toque tão gelado.

Ante um berro de seu dono, desatou

Numa corrida em frenesi, desembestado,

Como se sempre avante o impelisse

Uma force majeure que ninguém fora ele visse.

XLIII

Veloz como o vento o corcel galopava,

Num piscar de olhos singrando Christiania;

Como, porém, vivalma não o notava

Era o que fazia da coisa mais estranha.

Tão célere a montaria viajava

Que a moça, para sua tristeza tamanha,

Nem ao menos podia se consolar

Tentando às distintas paisagens admirar.

XLIV

A única coisa que podia discernir

Era uma pletora de vultos e borrões;

Sombras de transeuntes a ir e a vir,

O reflexo fugaz da luz dos lampiões;

Entre séria e divertida a refletir

(Pois só isto podia fazer) com seus botões,

Lembrou-se dalguns versos que outrora leu –

Repetiu-os baixo: “Die Todten reiten schnell…”

XLV

O chiste já não pareceu tão engraçado

Quando o real, emulando a ficção,

Fez a moça ver que a havia guiado

À mesma sina da heroína da canção

Que há tanto tempo lera – seu desesperado

Captor já andava com mais lentidão,

E a poucas milhas conseguia perceber

Um mar de crucifixos a se estender.

XLVI

Como o Cemitério de — reconheceu

O lugar onde o de capuz intencionava

Levá-la – por sua vida então temeu,

Pois da velha balada tão bem se lembrava…

Pelos portões o cavalo irrompeu;

Por entre as lápides tão bem se manejava

Que pensou não estar muito enganada

Ao crer-se refém de uma alma penada…

XLVII

Defronte a uma cripta colossal,

Mais redolente a uma opulenta mansão,

Foi onde a cavalgada chegou ao final;

Tomando sua namorada pela mão,

Disse o encapuzado: “Annabel! Afinal

Chegamos – bem na hora da celebração!”

Tão logo o casal a necrópole adentrou,

Qual névoa o bizarro alazão se dissipou.

XLVIII

Como se as coisas não pudessem piorar,

Lá dentro a mais insana das celebrações

Que pudera nossa heroína contemplar

Se sucedia: presa numa das visões

De James Ensor é como julgava estar

Ante a insânia, o excesso, as devassidões

Daquela assembleia de mortos redivivos

Até então incógnita à visão dos vivos.

XLIX

Truões horrendos, com seus ventres distendidos,

Grotescas gargalhadas ao ar lançavam;

Esqueletos ambulantes ressequidos

Entre si e em meio aos demais tagarelavam;

Caricatas matronas com seus vestidos

Tal qual balões, de ar cheios, voejavam;

Não havia, em toda parte, uma visão

Que não desafiasse o bom-senso e a razão!

L

Um tinha um imenso nariz; outro, nenhum;

Outro adiante – era homem ou mulher?

Aquele tinha o infortúnio de ter um

Só olho – um ciclope vindo a se parecer.

Ter um só membro (ou mesmo vários, ou – NENHUM)

Era a regra, bem podia Anastasia ver,

Naquela festa de monstrengos mutilados,

Quimeras compostas, seres malformados.

LI

Mal fazendo-se ouvir com a sinfonia

Cacofônica que no hall ribombava,

O de capuz, no auge de sua alegria,

À companheira apavorada exclamava:

“Eras a esperar por ti! E agora o dia

Pelo qual todo esse tempo almejava

Chegou – tenho-te comigo bem aqui;

Unamo-nos, por fim, amada ANNABEL LEE!”

LII

E finalmente o negro capuz abaixou,

De modo que afinal a moça pôde ver

Seu rosto – em ânsias o estômago lhe embrulhou

A nefasta visão daquele horrendo ser

Que até então oculto em sombras lhe falou;

Tão feio era que fazia parecer

Os convidados daquela fête infernal

Um cortejo de anjos celestes divinal.

LIII

Era um cadáver desdentado e lazarento,

Suas lívidas, murchas faces salpicadas

Dum líquido escarlate e sanguinolento;

Suas feições pareciam congeladas

Num grito de pavor a todo momento,

Pela putrefação já tão maceradas

Que seus únicos traços de homem restantes

Eram os olhos – leitosos, rutilantes.

LIV

Ciente que naquele hall abarrotado

Não teria qualquer olhar amigável,

E que tentar uma fuga em tal estado

Era algo igualmente desaconselhável,

Anastasia, resignada a seu fado

De ser o amor daquele ser execrável,

Anestesiada nem se importou

Quando o morto rubro em seus braços a tomou.

LV

“Dai-me um beijo, e sejas minha eternamente!”,

O repulsivo morto-vivo exclamou –

E seu rosto tinto de sangue e repelente

Do de nossa heroína aproximou.

Esta, entre tremores e náuseas doente,

Toda a coragem que não tinha juntou

E, congelada de repulsa e horror,

Paciente preparou-se para o pior.

LVI

O beijo fatal, porém, nunca recebeu:

Uma desgraça abalou a celebração.

De modo repentino, tudo escureceu

E, atiçando ainda mais a confusão,

O chão sob os pés de todos estremeceu –

O desespero reinou por todo o salão

Quando sobre si veio o lugar a ruir,

Num fundo fosso chão abaixo a cair.

LVII

Um a um os disformes monstros despencavam

A um destino até então desconhecido;

O fosso era tão fundo que não enxergavam

Onde dar-se-ia por interrompido,

E com medo de morrer (outra vez) gritavam –

Tão agoniante era aquele ruído

Que Anastasia jurou mesmo ser capaz

De espantar as legiões do próprio Satanás.

LVIII

Ela própria, enquanto entre os demais caía,

Amaldiçoou seu camarada encapuzado

E duplamente àquele fatídico dia

Em que seus caminhos haviam se cruzado.

O causador de seus males já não mais via;

Olhou para um lado – para o outro lado –

Para cima – sob os pés – e a visão

Que teve quase parou-lhe o coração.

LIX

Ao final do profundo buraco chegara –

Lá, um verme de tamanho descomunal

Seu tenebroso domicílio fixara.

Inchado, nédio, de palidez fantasmal,

Àquele a invadir-lhe a casa devorara,

E Anastasia, naquela hora, afinal

Preferiu vezes mil ao baile retornar

E outras mil seu sangrento noivo beijar.

LX

Da goela funda, gosmenta e desdentada

Da enorme criatura se aproximava,

E nossa heroína, já desenganada,

A Deus e a Seus anjos e santos suplicava

Para que sua morte tão inesperada

Fosse ao menos veloz – enquanto rezava…

Um baque! E tudo outra vez escureceu!

O monstruoso verme à mocinha comeu.

LXI

Com sua cabeça latejando de dor,

Viu-se Anastasia lançada a um duro chão;

Zonza, de visão turva, olhou a seu redor

Tentando pôr-se a par de sua situação.

Consciência ofuscada por dor (e por pavor),

Pensou, a mente girando num turbilhão,

O quão duro era cair nos órgãos internos

Daquele verme oriundo dos Infernos –

LXII

Mas, após um instante a rastejar

Pelo chão, tentando enfim se reerguer,

Pôde fazê-lo – mas não sem cambalear,

Juntando forças que nem mesmo cria ter –

E, sentindo um lampejo de razão voltar,

Após um exame melhor conseguiu ver

Que não estava prestes a ser digerida

Ou em conjunção com seres mortos-em-vida:

LXIII

A seu bom e velho castelo retornara,

À tão conhecida ruinosa moradia

Onde toda sua tenra existência passara;

Em nenhuma parte, felizmente, havia

Qualquer ser encapuzado que a tomara

Por alguém que nem ao menos conhecia,

Tampouco vermes ou núpcias sepulcrais –

Tudo fora tão só um sonho! Nada mais!

LXIV

E nossa heroína riu, aliviada;

Riu como jamais antes havia rido.

Agora que a paúra fora superada

Até que fora um tanto quanto divertido –

Sua imaginação, sempre tão inflamada,

Pregou-lhe um susto… e que susto havia sido

Aquele! Poderia ser inspirador

À pena de qualquer caprichoso escritor

LXV

(Mas EU achei-o, feliz ou infelizmente).

Consigo, porém, Anastasia pensou

Que de seu estilo de vida grandemente

Ascético e solitário se cansou;

Alguma força oculta sábia e providente

Aquele estranho pesadelo lhe enviou

Para avisar-lhe que, se adormece a razão,

Monstros perturbam-lhe a mente e o coração;

LXVI

Portanto, sua biblioteca mandou trancar,

Pois por ora já não suportava mais ler

Contos de bruxas, de fantasmas a arrastar

Correntes por casas desertas a gemer,

De vampiros que à noite saem a sugar

Sangue – e não sem um pesar a lhe abater,

Guardou seus tomos de Poe com muito carinho,

Prometendo a eles voltar rapidinho.

LXVII

Logo após deixou sua cidade natal

E decidiu partir numa longa jornada

A fim de esquecer-se do clima glacial

E dos bolores de sua vetusta morada;

Um clima mais incandescente e tropical

Talvez a deixaria mais revigorada,

E seguiu ao Sul, sua mente cheia de planos –

Não pretendendo voltar por alguns anos.

LXVIII

Porém, não me é interessante saber

Se retornou mais feliz – e mais bronzeada;

Tampouco o que viu, ou o que deixou de ver,

Deste que a vós escreve não pertence à alçada;

Nem a Musa, ou eu, podemos discorrer

Sobre página a nossos olhos vedada –

Portanto, que neste ponto encerremos

Antes que tão bom final nós estraguemos.

(São Carlos, 27 de dezembro de 2023)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 09/02/2013
Reeditado em 08/02/2024
Código do texto: T4131668
Classificação de conteúdo: seguro
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