Anastasia Abrahamsen: Uma extravagância
(A Beatriz Uchôa)
[Nota do autor: Parte autoparódia, parte tributo à obra do grande Edgar Allan Poe e parte saborosa in-joke, no que um falhar o outro o sustentará.]
“No bugaboo tales – such as this.”
(“THE PREMATURE BURIAL”)
I
É um primor, leitores meus, ser brasileiro;
Terra de cores, sabores, alegrias,
Onde no céu resplandece o Cruzeiro
E singra o sabiá pelas aéreas vias –
Ao terminar sua excursão, prazenteiro
Encanta a todos com suas doces melodias
Tal como encantou a Dias e outros mais
Ilustres conterrâneos meus – meus ancestrais!
II
Mas mesmo esta linda terra de palmeiras
Oculta um defeito crasso, imperdoável:
Entra ano, sai ano, nossas moleiras
Cozinham sob este Sol insuportável,
E nem mil sabiás cantantes, mil palmeiras,
Aliviam-me esta ordália detestável
De enlanguescer neste clima infernal
De meu país abençoado – e tropical.
III
Portanto, ó Musa, se me tendes compaixão,
Carrega meu verso em tuas asas velozmente
Para longe deste maldito verão,
Bem longe deste Sol perpétuo e inclemente;
Trazei de meus cantares a inspiração
Dum lugar a alguém como eu mais condizente:
Um lugar onde, inclemente e eterno,
É – não o Sol do verão, mas – o frio do inverno.
IV
Vejamos… Sem lhe abusar da boa vontade,
Leva-me, querida Musa, a Christiania –
Até onde sei, é uma encantadora cidade
Numa terra inspiradora – e estranha,
Onde os velhos deuses pagãos em liberdade
Ainda têm influência nada tacanha
E até mesmo o mais afrescalhado senhor
Tem como ancestral algum Viking de valor.
V
Sim! Nesta terra, de fiordes e geleiras,
Delineia, Musa minha, minha estrada –
Preenchei meus olhos (e páginas inteiras)
Com histórias desta cidade gelada
Sem (graças a Deus!) sabiás ou palmeiras,
Até que por fim encontre a apropriada –
Ah! Que oportuno! Um conto que me apetece!
É falar no diabo… e ele aparece!
VI
Existe cá, desde tempos imemoriais,
Um slottet de antiguidade incalculável;
Uns querem datá-lo das eras medievais –
Já outros, em conjetura mais improvável,
O creem datar dalgum tempo ainda mais
Primevo, antediluviano, inexpugnável:
Ou algum nume celeste o construiu,
Ou, antes do Orbe existir, já existiu.
VII
E desde que o velho slottet existia
Por vetusta família foi ocupado.
De sua linhagem, porém, ninguém sabia,
Tampouco como o clã fora agraciado
Com aquela descomunal moradia;
Nada havia escrito sobre seu passado
(Uma linha!) nos registros da História,
E menos que nada nos mares da Memória.
VIII
Só uma coisa a seu respeito era sabida:
Fosse por trabalho honesto ou por ardis,
Desde sempre era a família conhecida
Pela corte e a Coroa do país,
Sendo magnificamente retribuída
Por seus serviços (se nobres ou se vis,
Só Deus o sabe) – acabando bem abastados
Após milênios de lucros conquistados.
IX
Entre honrarias, pompas, opulência
Por incontáveis anos o clã viveu
Até que a insaciável boca da Decadência
Sua deslumbrante árvore corroeu –
Me ipso teste! Nobreza e indolência
Nunca formam um bom par… E, assim, morreu
Dos ABRAHAMSEN o astro outrora brilhante,
A glória relegada a um passado distante.
X
No castelo ruinoso, atualmente,
Uma só pessoa – e ninguém mais – morava;
Dos Abrahamsen a única descendente,
Anastasia, leitor, é como se chamava.
Sua vida, ano após ano, lentamente
Semper eadem gota a gota se escoava,
E nada lhe dava tamanha alegria
Afora seu inalterável dia a dia.
XI
Era Anastasia uma singular menina:
Ao vê-la, o moroso Anjo da Melancolia
Pousou em seu berço, ainda pequenina,
E talvez por algum amor que lhe sentia
Proclamou-lhe: “Minha irmã serás em sina!”
Desde então, jamais houve sequer um dia
Em que o júbilo viesse visitar
A introvertida garota em seu lar.
XII
Presenteavam-na com jogos e brinquedos,
Com os quais pouco (ou melhor, nunca) brincava;
Em ocasiões festivas, dos folguedos
A alegria geral não compartilhava,
E ao decorrer dos dias menos frios e ledos
Na enorme biblioteca se trancava
E lia da manhã até o anoitecer,
Quase sempre entre os livros vindo a adormecer.
XIII
E o que lia a menina? Contos de fadas,
Os bons e velhos contos tão sacarinos
Sobre príncipes, donzelas encantadas
Que apetecem a todos os pequeninos?
Ah…! Suas leituras eram diferenciadas –
Contraposta às meninas e aos meninos
De sua tenra idade, nada a seduzia
Mais do que velhos romances – e poesia.
XIV
De todos, porém, quem mais admirava
Era Edgar Poe (mas que grande surpresa!) –
Por horas com veneração o folheava
Degustando sua mórbida beleza,
E em seu feminil coração palpitava
Ainda em sua primavera uma certeza:
“Quando adulta hei de ser sábia e bela,
Mais até do que Ligeia ou Morella!”
XV
E o tempo fez o que de praxe faz: passou.
Nossa Anastasia a olhos vistos cresceu
E, bem ou mal, seu sonho se concretizou –
Moldada pelas negras páginas que leu
Uma linda, fantasmal mulher se tornou,
E o bom e velho mal do século preencheu
Sua cabecinha com mórbidos pensamentos
Cutucando-a seja em bons ou maus momentos.
XVI
Ora Werther, ora Onegin ou René,
Mil vezes ao dia seu ânimo mudava:
Se num minuto era morosa e blasé,
No outro a imaginação se lhe inflamava –
Fosse onde estivesse, punha-se de pé
E por papel ou uma tela procurava…
Escrevia versos funestos, decadentes –
Pintava cenas loucas, incongruentes!
XVII
Monstros, cemitérios, paisagens letais
Em seu cérebro perturbado abundavam;
Portentos de morte, sigilos fatais
Por onde a vista lhe estendia fervilhavam;
Sonhos agitados, delírios mortais
Seu sono, à noite, vez por outra perturbavam –
Quem por acaso o castelo visitasse
Isto veria, onde quer que se voltasse,
XVIII
Nos quadros por toda parte pendurados –
Nos livros de sua coleção incontável –
Nos versos e caracteres rabiscados
Em seus papéis, de cunho indecifrável –
Nas estátuas e adereços comprados
De regiões de procedência inominável –
Resumindo a quem tem preguiça de ler,
Era ela um Des Esseintes em forma de mulher.
XIX
“Mas… e se por acaso, algo revirasse
A vida tão regrada de nossa heroína?
E se, só por um dia, alguém abalasse
Todo o mundo conhecido da menina?
E se alguma desventura alterasse
O pétreo cronograma de sua rotina?”,
Oferecendo tentadora inspiração
Questiona a Musa; como posso dizer “não”…?
XX
Era uma noite tão negra quanto chuvosa
Quando este peculiar conto aconteceu:
Do velho clã Abrahamsen a ruinosa
Morada igualmente estava imersa em breu,
Com exceção duma luzinha vaporosa
Que, num cômodo, Anastasia acendeu
Pois, como sempre o fizera todo dia,
Até que viesse o sono a arrebatá-la lia.
XXI
Frente a uma grande janela se sentava,
Donde a vastidão de seus domínios via;
Um de seus queridos tomos estudava
Enquanto a chuva, sem se incomodar, caía.
Do livro à janela os olhos desviava
Vez por outra em lânguida monotonia,
Lutando contra o sorrateiro soninho
E a vontade de ler só mais um pouquinho.
XXII
Eis que, porém, algo deveras peculiar
Espantou-lhe o sono – e a concentração:
Uma figura a parecia observar
Lá fora, tão pequenina, pregada ao chão,
Sem que a tempestade a viesse abalar –
Encarava-a com tamanha obstinação
Que, mesmo incapaz de discernir-lhe a face,
Sentiu como se algo a alma lhe transfixasse.
XXIII
Ora! Apesar de sua predisposição
A uma existência em total recolhimento,
Anastasia não tinha um mau coração
E detestava contemplar o sofrimento
(Exceto, é claro, nas páginas da Ficção).
Após refletir consigo por um momento
Disse: “Um pobre viajante em meus umbrais
Vem refugiar-se; é só isto, e nada mais.”
XXIV
Numa grossa capa escura se envolveu
E um par de galochas calçou num instante;
Com pressa mil lances de escadas desceu,
Preocupada com o pobre viandante,
Perguntando-se o que lhe aconteceu
Para que, em meio a tal chuva, saísse, errante,
E viesse a dar logo no slottet isolado
Que, usualmente, pelo povo era evitado.
XXV
A enorme porta do castelo então abriu,
Indo ao encontro do hóspede misterioso –
E eis que de perto, então, finalmente o viu,
Mas, sem saber se era ou não amistoso,
Um certo desconforto em seu peito sentiu:
Um capuz surrado ocultava, sigiloso,
Da figura membros, face, expressão,
E – pior do que estes – sua INTENÇÃO.
XXVI
Porém, como não era preconceituosa,
Por ignorar sua apreensão optou,
E disse-lhe a moça, educada e prestimosa:
“Por que e como em meus domínios aportou,
Ó peregrino, em tal condição lastimosa?
Se por bem o Fado aqui lhe enviou,
Saibas que hoje lhe cedo minha moradia,
Seguindo as velhas normas da cortesia.
XXVII
Tendes fome? Dar-te-ei algo de comer.
Ou tendes sono? Deixar-te-ei cá dormir.
Algum dinheiro posso lhe oferecer
Se tendes um lugar aonde queiras ir.
Sob meu teto esta noite hei de te proteger
Antes de deixá-lo, em meio à chuva, seguir.
Dos Abrahamsen não se põe a honra em xeque;
Queira entrar, por obséquio, e se seque!”
XXVIII
Ou por não ser habituada à cortesia
Ou por acometê-la estranha surdez,
A bizarra figura nada respondia,
Ali, estancada, em taciturna mudez.
Vendo que a seus gestos de paz não atendia,
“Queira entrar!”, disse Anastasia outra vez –
E outra vez foi como se falasse em vão:
Não alterava o estranho sua posição.
XXIX
Quase se arrependendo de sua bondade,
Anastasia em seu âmago quis voltar
Àquilo que bem conhecia: a soledade
E o aconchego de seu isolado lar.
Não o podia, no entanto – em verdade,
Algo naquele ser sentia lhe intrigar,
E ao mesmo tempo que queria rechaçá-lo
Algo a compelia a recepcioná-lo.
XXX
“O que explica esse teu medo, meu amigo?”,
A moça, entre pavor e tensão, retomou.
“Este teu estranhamento para comigo
É…” A frase, no entanto, nunca terminou.
Estranhamente, Anastasia jurou consigo
Que, consigo, o embuçado sussurrou
Uma palavra que nunca antes ouvira –
Um nome – o nome de alguém que nunca vira…
XXXI
“Disse algo?”, perguntou ela, assustada,
E com asco e desconforto percebeu
Que a figura, até então estoica e calada,
Sua rígida compostura perdeu:
Tremendo de êxtase, superexcitada,
Bradou: “És tu mesmo! És tu, Annabel!”
Com uma voz lúgubre, rouca, fantasmal,
Mais apropriada a um ente sobrenatural.
XXXII
“A morte achou que poderia a mim roubar
E destruir o nosso duradouro amor –
Mal sabe ela, porém, que jurei te buscar
No céu, terra, inferno – seja onde for –
E após por turbilhões de tempo navegar
Aqui estás!” Sempre em extático furor
Se contorcia e declamava o ser sombrio;
A pobre moça, chocada, não dava um pio.
XXXIII
Recuperando (em grande parte) a razão,
Tão logo pareceu se acalmar o ser,
Anastasia quis desfazer a confusão
E, tão logo o pôde, esforçou-se por dizer:
“Queira acalmar-te! Presta em mim muita atenção –
Não quero magoar-te, mas tenta entender…
Nenhuma Annabel conheço, ou conheci –
Tampouco SOU Annabel – nunca antes o vi…!”
XXXIV
O de capuz, não podendo ser aplacado,
Tornou à mulher: “Não brinques, Annabel!
Meus percalços nada tiveram de engraçado
Para que assim respondas, leviana, ao meu
Amor – mas conheço-a…! Não estou zangado –
Ainda mais porque trago comigo o teu
Retrato – aquele mesmo que me deste
Quando, louco, fiz-me crer que tu morreste.”
XXXV
Levando à nuca uma mão esqueletal,
Um antiquíssimo relicário tirou,
Oferecendo-o a Anastasia – que, afinal,
Compreendera o que ao estranho perturbou:
Sua namorada era exatamente igual
A si mesma! Estupefata, contemplou
Seus próprios traços faciais em miniatura
Naquela velha, mas bem-feita, pintura…
XXXVI
Seus cachos cor de corvo e delicados
Replicados foram com grande maestria;
O rosto pálido, os olhos amendoados
Também foram bem captados – bem o via;
O nariz aquilino – os bem-proporcionados
Seios – tão fiéis, que ela julgaria
Ter sido ela própria a servir de modelo –
“Ora! Mas como”, pensou, “poderia sê-lo!?”
XXXVII
“Por ora é mister este lugar deixarmos”,
Disse o de capuz, à garota acordando
De seu transe. “Tempo há para conversarmos
Tão logo partamos – pois vamos andando!
Passa da hora, Annabel, de nos casarmos
Após éons e éons por ti procurando –
E bendizendo aos deuses pela minha sorte,
Finalmente o vi – o amor conquista a morte…!”
XXXVIII
Até então minimamente tolerante
De toda aquela inexprimível loucura,
Anastasia, de fúria o rosto coruscante,
Bradou, ultrajada, à insólita figura:
“Basta, louco! De ti ouvi o bastante!
Daqui vais diretamente à sepultura
Se não deixares agora meu solar;
Jamais serás de novo bem-vindo em meu lar!”
XXXIX
Mas antes que esboçasse qualquer reação
Ou pudesse, de algum modo, se defender,
Com força a figura agarrou-lhe uma mão,
E sentiu a mulher seu corpo a tremer:
Feroz combate entre asco e submissão
Era travado, encarniçado, em seu ser,
E apesar de ser incapaz de o estudar
Sentia-se fulminada por seu olhar.
XL
“Meu cavalo aguarda não muito distante”,
Dizia o estranho enquanto guiava
Nossa Anastasia pela mão – relutante,
De frio e pavor a moça tiritava;
A tempestade até então tonitruante
Pouco a pouco sua potência amainava –
Mas pior que a chuva, em sua opinião,
Era o toque tão frio daquela ossuda mão.
XLI
E de fato, não muito longe, amarrado
A um enorme pinheiro antigo e frondoso,
Esperava a montaria do encapuzado.
Era o corcel mais bizarro e asqueroso
Que já havia Anastasia contemplado:
Parecia rir um riso horroroso
Deixando à mostra duas fileiras de dentes
Quais os de um cadáver – podres, repelentes.
XLII
Após libertá-lo, o estranho montou
Em seu mais estranho cavalo avermelhado
E sorridente; Anastasia o acompanhou,
Sempre à mercê daquele toque tão gelado.
Ante um berro de seu dono, desatou
Numa corrida em frenesi, desembestado,
Como se sempre avante o impelisse
Uma force majeure que ninguém fora ele visse.
XLIII
Veloz como o vento o corcel galopava,
Num piscar de olhos singrando Christiania;
Como, porém, vivalma não o notava
Era o que fazia da coisa mais estranha.
Tão célere a montaria viajava
Que a moça, para sua tristeza tamanha,
Nem ao menos podia se consolar
Tentando às distintas paisagens admirar.
XLIV
A única coisa que podia discernir
Era uma pletora de vultos e borrões;
Sombras de transeuntes a ir e a vir,
O reflexo fugaz da luz dos lampiões;
Entre séria e divertida a refletir
(Pois só isto podia fazer) com seus botões,
Lembrou-se dalguns versos que outrora leu –
Repetiu-os baixo: “Die Todten reiten schnell…”
XLV
O chiste já não pareceu tão engraçado
Quando o real, emulando a ficção,
Fez a moça ver que a havia guiado
À mesma sina da heroína da canção
Que há tanto tempo lera – seu desesperado
Captor já andava com mais lentidão,
E a poucas milhas conseguia perceber
Um mar de crucifixos a se estender.
XLVI
Como o Cemitério de — reconheceu
O lugar onde o de capuz intencionava
Levá-la – por sua vida então temeu,
Pois da velha balada tão bem se lembrava…
Pelos portões o cavalo irrompeu;
Por entre as lápides tão bem se manejava
Que pensou não estar muito enganada
Ao crer-se refém de uma alma penada…
XLVII
Defronte a uma cripta colossal,
Mais redolente a uma opulenta mansão,
Foi onde a cavalgada chegou ao final;
Tomando sua namorada pela mão,
Disse o encapuzado: “Annabel! Afinal
Chegamos – bem na hora da celebração!”
Tão logo o casal a necrópole adentrou,
Qual névoa o bizarro alazão se dissipou.
XLVIII
Como se as coisas não pudessem piorar,
Lá dentro a mais insana das celebrações
Que pudera nossa heroína contemplar
Se sucedia: presa numa das visões
De James Ensor é como julgava estar
Ante a insânia, o excesso, as devassidões
Daquela assembleia de mortos redivivos
Até então incógnita à visão dos vivos.
XLIX
Truões horrendos, com seus ventres distendidos,
Grotescas gargalhadas ao ar lançavam;
Esqueletos ambulantes ressequidos
Entre si e em meio aos demais tagarelavam;
Caricatas matronas com seus vestidos
Tal qual balões, de ar cheios, voejavam;
Não havia, em toda parte, uma visão
Que não desafiasse o bom-senso e a razão!
L
Um tinha um imenso nariz; outro, nenhum;
Outro adiante – era homem ou mulher?
Aquele tinha o infortúnio de ter um
Só olho – um ciclope vindo a se parecer.
Ter um só membro (ou mesmo vários, ou – NENHUM)
Era a regra, bem podia Anastasia ver,
Naquela festa de monstrengos mutilados,
Quimeras compostas, seres malformados.
LI
Mal fazendo-se ouvir com a sinfonia
Cacofônica que no hall ribombava,
O de capuz, no auge de sua alegria,
À companheira apavorada exclamava:
“Eras a esperar por ti! E agora o dia
Pelo qual todo esse tempo almejava
Chegou – tenho-te comigo bem aqui;
Unamo-nos, por fim, amada ANNABEL LEE!”
LII
E finalmente o negro capuz abaixou,
De modo que afinal a moça pôde ver
Seu rosto – em ânsias o estômago lhe embrulhou
A nefasta visão daquele horrendo ser
Que até então oculto em sombras lhe falou;
Tão feio era que fazia parecer
Os convidados daquela fête infernal
Um cortejo de anjos celestes divinal.
LIII
Era um cadáver desdentado e lazarento,
Suas lívidas, murchas faces salpicadas
Dum líquido escarlate e sanguinolento;
Suas feições pareciam congeladas
Num grito de pavor a todo momento,
Pela putrefação já tão maceradas
Que seus únicos traços de homem restantes
Eram os olhos – leitosos, rutilantes.
LIV
Ciente que naquele hall abarrotado
Não teria qualquer olhar amigável,
E que tentar uma fuga em tal estado
Era algo igualmente desaconselhável,
Anastasia, resignada a seu fado
De ser o amor daquele ser execrável,
Anestesiada nem se importou
Quando o morto rubro em seus braços a tomou.
LV
“Dai-me um beijo, e sejas minha eternamente!”,
O repulsivo morto-vivo exclamou –
E seu rosto tinto de sangue e repelente
Do de nossa heroína aproximou.
Esta, entre tremores e náuseas doente,
Toda a coragem que não tinha juntou
E, congelada de repulsa e horror,
Paciente preparou-se para o pior.
LVI
O beijo fatal, porém, nunca recebeu:
Uma desgraça abalou a celebração.
De modo repentino, tudo escureceu
E, atiçando ainda mais a confusão,
O chão sob os pés de todos estremeceu –
O desespero reinou por todo o salão
Quando sobre si veio o lugar a ruir,
Num fundo fosso chão abaixo a cair.
LVII
Um a um os disformes monstros despencavam
A um destino até então desconhecido;
O fosso era tão fundo que não enxergavam
Onde dar-se-ia por interrompido,
E com medo de morrer (outra vez) gritavam –
Tão agoniante era aquele ruído
Que Anastasia jurou mesmo ser capaz
De espantar as legiões do próprio Satanás.
LVIII
Ela própria, enquanto entre os demais caía,
Amaldiçoou seu camarada encapuzado
E duplamente àquele fatídico dia
Em que seus caminhos haviam se cruzado.
O causador de seus males já não mais via;
Olhou para um lado – para o outro lado –
Para cima – sob os pés – e a visão
Que teve quase parou-lhe o coração.
LIX
Ao final do profundo buraco chegara –
Lá, um verme de tamanho descomunal
Seu tenebroso domicílio fixara.
Inchado, nédio, de palidez fantasmal,
Àquele a invadir-lhe a casa devorara,
E Anastasia, naquela hora, afinal
Preferiu vezes mil ao baile retornar
E outras mil seu sangrento noivo beijar.
LX
Da goela funda, gosmenta e desdentada
Da enorme criatura se aproximava,
E nossa heroína, já desenganada,
A Deus e a Seus anjos e santos suplicava
Para que sua morte tão inesperada
Fosse ao menos veloz – enquanto rezava…
Um baque! E tudo outra vez escureceu!
O monstruoso verme à mocinha comeu.
LXI
Com sua cabeça latejando de dor,
Viu-se Anastasia lançada a um duro chão;
Zonza, de visão turva, olhou a seu redor
Tentando pôr-se a par de sua situação.
Consciência ofuscada por dor (e por pavor),
Pensou, a mente girando num turbilhão,
O quão duro era cair nos órgãos internos
Daquele verme oriundo dos Infernos –
LXII
Mas, após um instante a rastejar
Pelo chão, tentando enfim se reerguer,
Pôde fazê-lo – mas não sem cambalear,
Juntando forças que nem mesmo cria ter –
E, sentindo um lampejo de razão voltar,
Após um exame melhor conseguiu ver
Que não estava prestes a ser digerida
Ou em conjunção com seres mortos-em-vida:
LXIII
A seu bom e velho castelo retornara,
À tão conhecida ruinosa moradia
Onde toda sua tenra existência passara;
Em nenhuma parte, felizmente, havia
Qualquer ser encapuzado que a tomara
Por alguém que nem ao menos conhecia,
Tampouco vermes ou núpcias sepulcrais –
Tudo fora tão só um sonho! Nada mais!
LXIV
E nossa heroína riu, aliviada;
Riu como jamais antes havia rido.
Agora que a paúra fora superada
Até que fora um tanto quanto divertido –
Sua imaginação, sempre tão inflamada,
Pregou-lhe um susto… e que susto havia sido
Aquele! Poderia ser inspirador
À pena de qualquer caprichoso escritor
LXV
(Mas EU achei-o, feliz ou infelizmente).
Consigo, porém, Anastasia pensou
Que de seu estilo de vida grandemente
Ascético e solitário se cansou;
Alguma força oculta sábia e providente
Aquele estranho pesadelo lhe enviou
Para avisar-lhe que, se adormece a razão,
Monstros perturbam-lhe a mente e o coração;
LXVI
Portanto, sua biblioteca mandou trancar,
Pois por ora já não suportava mais ler
Contos de bruxas, de fantasmas a arrastar
Correntes por casas desertas a gemer,
De vampiros que à noite saem a sugar
Sangue – e não sem um pesar a lhe abater,
Guardou seus tomos de Poe com muito carinho,
Prometendo a eles voltar rapidinho.
LXVII
Logo após deixou sua cidade natal
E decidiu partir numa longa jornada
A fim de esquecer-se do clima glacial
E dos bolores de sua vetusta morada;
Um clima mais incandescente e tropical
Talvez a deixaria mais revigorada,
E seguiu ao Sul, sua mente cheia de planos –
Não pretendendo voltar por alguns anos.
LXVIII
Porém, não me é interessante saber
Se retornou mais feliz – e mais bronzeada;
Tampouco o que viu, ou o que deixou de ver,
Deste que a vós escreve não pertence à alçada;
Nem a Musa, ou eu, podemos discorrer
Sobre página a nossos olhos vedada –
Portanto, que neste ponto encerremos
Antes que tão bom final nós estraguemos.
(São Carlos, 27 de dezembro de 2023)