As confissões de Frei Martinho

(A Rogério Skylab)

“Recordari volo transactas fœditates meas et carnales corruptiones animæ meæ, non quod eas amem, sed ut amem te, Deus meus. Amore amoris tui facio istuc, recolens vias meas nequissimas in amaritudine recogitationis meæ, ut tu dulcescas mihi, dulcedo non fallax, dulcedo felix et secura, et conligens me a dispersione, in qua frustatim discissus sum dum ab uno te aversus in multa evanui. Exarsi enim aliquando satiari inferis in adulescentia, et silvescere ausus sum variis et umbrosis amoribus, et contabuit species mea, et computrui coram oculis tuis placens mihi et placere cupiens oculis hominum.”

(CONFESSIONES, livro II)

I

Oh, meus irmãos em Cristo! Pressinto, enfim,

Após anos contra Satã a batalhar,

Que se aproxima no horizonte o meu fim;

Este meu tosco invólucro devo deixar

Dentro em muito, muito breve – e, assim,

Minhas últimas forças hei de invocar

Para, absorto em mística contemplação,

Legar aos valorosos minha Confissão.

II

Tudo hei de registrar como se sucedeu,

Sem que adorne qualquer fato com ficção;

Se algo houver que em minha memória se perdeu,

Vinde e sondai, Senhor, meu Deus, meu coração!

Aquilo que de Ti, em vão, o Homem escondeu

Tu o desenterras com um gesto de Tua mão –

Portanto guia-me em minha empreitada,

Senhor, e que a ti seja ela consagrada!

III

Não penseis, porém, que falo do passado

Com orgulho ou até mesmo nostalgia:

Lembro-me do que outrora fui enojado,

Tendo apenas como razão de alegria

Pela piedade de Deus ser resgatado.

Principio – e oro que seja de valia

A negra história deste triste pecador,

Depois que vá juntar-me eu a meu Criador.

IV

De minha vida e maus feitos arrependido

No Monastério de São — vim a dar;

Desde então como Irmão Martinho conhecido,

As sobras de meus anos passei a orar

E a trabalhar (qual roga a norma) – e, remido

(Assim espero) do Mal a me infectar,

Alcancei de minha existência a plenitude,

Sabendo que hei de partir em beatitude.

V

Porém (oh, Deus! Perdoai-me!) quem diria

Que já fui o parágono da Vaidade

Humana, terrenal? Quem adivinharia

Que cortejei do demônio a potestade

E invejei-lhe a coroa? Quem pensaria

Que, chafurdando no lodo da Maldade,

Fui, há muitos, muitos anos já passados,

Um dos mais infames, torpes celerados?

VI

Noutros tempos fui Solfier Sanseverino!

Ainda há quem o recorde, certamente,

Do quão venturoso foi o meu destino.

Nascido em berço d’ouro resplandecente,

Foi minha existência, desde pequenino,

Pela opulência regida, e indolente;

É sempre assim! Não é coisa de admirar-se

Que o pecado entre os ricos venha a instalar-se.

VII

Entretanto, não sei bem como dizer

Como – por que – quando vim a me tornar mau:

Mas… tornei-me. Apenas Deus deve o saber,

Pois ocultos são seus desígnios, afinal.

Antes de (tão tarde!) vir a me arrepender

Não havia um principado infernal

Dentre os sete cujas cortes não conheci –

E aos sete todos, tolamente, não servi.

VIII

Mas, de todos os sete, foi meu preferido

O lúbrico, o descomedido Asmodeu;

Ah! Se contemplasse qualquer mulher, perdido

Via-me de mim – já não era mais eu…!

Várias possuí, inconstante e fingido,

Para que saciasse o apetite meu.

De Paolo e Francesca até invejava o tormento

Só para que visse a bela um momento…

IX

(Em verdade vos digo… Don Juan coraria

E Casanova haveria de me repreender

Ante os vários desvarios que cometia.

O que ninguém, no entanto, pode vos dizer

Por mais que interroguem é como ocorreria

Minha mudança – e só posso agradecer

Ao meu Senhor, meu Deus, por sua compaixão.

Ouvi, pois! Deu-se assim minha conversão.)

X

Tive durante a juventude um grande amigo,

Que era, não menos que eu, um depravado;

Igualmente não menos nobre, Federigo

Panciera é como era chamado.

Eu sempre junto a ele – ele sempre comigo –

Pólux e Castor andando lado a lado –

Assim éramos, na malignidade irmãos…

Até que o matei com as minhas próprias mãos!

XI

Oh! Tal qual nosso Patriarca, induzido

A abandonar uma vida de ventura

E, um muar deixando-se ser conduzido

Pela mão de Eva, maculada e impura,

Ao mais cruel dos delíquios fui compelido

Por um dos belos defeitos da Natura –

Hoje é com nojo e ódio a me corroer

Que lembro que tanto amei… uma mulher!

XII

Ainda há quem se recorde na cidade

De uma certa dona, nobre e orgulhosa…

Era, em falta de melhor termo, uma beldade –

Loura, alva, róseas bochechas (tão formosa!

Esquecê-la ainda me traz dificuldade –

Agita-se meu coração em polvorosa…),

E que, a caminhar graciosa e altivamente,

Chamava-se Rosina (conveniente!).

XIII

Sobre ela quase nada se sabia;

Quase sempre em casa se enclausurava

E muito, muito pouco em público saía.

Poucas eram as relações que travava

E solteira em sua mansarda vivia –

As pungentes flechas do Amor ignorava.

Não havia então um mero rapazote

A não suspirar por Rosina Caselotti…

XIV

Eu próprio, pela Carne sempre escravizado,

Poucas não foram as vezes que tentei

Seduzi-la – mas via-me sempre frustrado!

Para vários bailes eu a convidei,

Apenas para ser vilmente ignorado;

Sua morada igualmente em vão visitei…

Não havia porteiro a me recepcionar,

Nem criado a quem pudesse subornar!

XV

E, assim, dia a dia ia eu definhando,

Entregue à tristeza resignadamente

Sem que cumprisse meu desígnio nefando

De deflorar outra presa facilmente.

Como palha já iam se assemelhando

Todas as outras que amei previamente –

Triste é nossa condição…! Tanto sofremos

Ansiando por tantas coisas que não temos!

XVI

Eis que certo dia veio visitar-me

Meu confrade Federigo, sorridente;

Dizia ter grandes notícias a dar-me,

Uma “boa novidade – boa e urgente”.

Pôs-se então, tagarelando, a falar-me

De uma presa que conquistara recente –

Dei-lhe à lenga-lenga pouca atenção

Até ouvir: “…Caselotti…” de supetão.

XVII

“Biltre!”, fora de mim, lembro de ter gritado.

“Há meses persigo a Caselotti em vão

Só para ver-me sob meu nariz furtado!

Não tens honra! És um rato e um rufião!”

Respondeu-me, muito sereno e controlado:

“No amor e na guerra não há proibição…

Que culpa tenho se perdeste teu talento

E tudo que fazes é sempre a passo lento?

XVIII

Mas, como dizia, nos encontraremos

Amanhã, ao cair da noite em seu lar;

Se isto o conforta, não mais nos veremos,

Pois com um amigo não quero brigar.

Segue, porém, um conselho: nos apressemos!

Caso contrário, mais hão de te roubar.”

E, assim zombeteiro, deixou-me Federigo,

O grande crápula a quem chamei de amigo.

XIX

Em minhas veias, qual a lava de um vulcão,

O sangue fervendo a borbulhar sentia.

Com vingança preencheu-se meu coração:

Apenas seu sangue a jorrar me aplacaria.

Meu melhor amigo, tornado um ladrão!

A mim mesmo jurei – dele me vingaria,

Pois até mesmo um libertino imoral

Segue a um código de conduta moral.

XX

E assim o fiz: pela cidade procurei

A fim de encontrar uma corja de bandidos,

Que com promessas de dinheiro comprei

Até que ante mim pusessem-se amolecidos.

Eram um trio: a cada um paguei

E disse: “Os quero daqui todos sumidos!

Gastai vossa paga a seu bel-prazer,

Mas Federigo Panciera deve morrer!”

XXI

Cumprindo sua promessa sem fracassar,

Apanharam Federigo numa emboscada

E, ele próprio depois de tanto apanhar,

Sua triste figura sangrenta foi deixada

A exaurir-se na sarjeta. O foram achar

Pela manhã – com a face tão desfigurada

Que, quem quer que o visse, crer não poderia

Que aquilo fora um ser humano um dia.

XXII

Àqueles três rufiões nunca mais vi,

E em seu destino pouco estou interessado.

Ao funeral do infeliz compareci

E uma ou outra lágrima, dissimulado,

Sem dificuldades fingir consegui.

Logo esqueci-me do defunto: animado,

Vi a um canto, chorando copiosamente,

Rosina – trajada em luto belamente.

XXIII

A partir daí, com muita facilidade

Galguei as escadas de seu coração:

Abracei-a, dizendo “Que fatalidade!”,

E logo para um beijo ofertou-me a mão.

Da mão aos lábios passei sem dificuldade

E com sucesso selamos nossa união –

Às vezes de Federigo lhe recordava

E—“Quem?”—abstraída ela assim replicava.

XXIV

Tinha-lhe o coração… mas me custava

Conseguir acesso àquela linda flor

Que entre as duas pernas se lhe ocultava –

Seu rosto se enrubescia de pudor

E a língua em sua boca se embaralhava

Quando o assunto era fazermos amor.

Tornava-se-me enfadonha, afinal,

E apenas isto é o que queria no final!

XXV

Mas numa quente noite veio procurar-me,

De semblante pensabundo – e decidido.

“Bem sei, meu Solfier, que queres desposar-me

Num lindo leito de núpcias – mas, querido!

Igualmente sei que vais abandonar-me

Pois porto um segredo mui bem escondido,

E pelo bem do pudor nunca o revelei

A qualquer um dos tantos homens que amei.

XXVI

Mas… ao que tudo indica, tu és diferente,

E amo-te como jamais amei ninguém.

Portanto hei de revelar-me – tão somente

Se prometeres não fugir-me também.”

“Quando a amo como me amas igualmente,

Por que de ti fugiria, ó meu bem?”

Assim respondi-lhe – se bem que, de fato,

Pretendia abandoná-la após o ato.

XXVII

Avidamente a meu quarto eu a guiei,

Celebrando em meu âmago outra vitória.

Com seu “segredo” pouco me preocupei

Já que logo seria só mais uma história

Dentre tantas outras que acumulei.

Hoje tudo não passa de uma memória

Vergonhosa, uma nódoa em meu passado

Antes de eu ser no sangue de Cristo lavado.

XXVIII

Sem pensar em qualquer coisa me despi,

Esperando que Rosina o mesmo fizesse.

Vendo desnudo o pescoço percebi

Que era como se um pomo de Adão tivesse –

A ausência de seios também discerni.

“Afinal de contas, tão feia me parece!”,

Disse a sotto voce, já aborrecido –

E eis que por um falo fui surpreendido.

XXIX

Um falo! Um grande, enorme falo alongado

Entre suas pernas pendia molemente!

Ó Senhor Deus! Fui cruelmente enganado

Em paga de meus crimes merecidamente!

Apaixonei-me por um reles transviado,

Perseguindo-o como um tolo cegamente!

A mim, a meu amigo, a tantos enganou!

Foi de tal modo que ele se justificou:

XXX

“É este meu segredo: desde pequenino

Com meu corpo me sentia descontente –

Questionava por que nascera menino

Quando mais me apetecia realmente

Aquilo relativo ao sexo feminino.

Contra meus impulsos batalhei vãmente

Até finalmente aceitar que era Rosina,

E não Rossini – não menino, e sim menina.

XXXI

Se de mim até então não me fugiste

É porque hás de aceitar-me como sou…

Nunca mais solitária, e nunca mais triste,

Encontrei a ti, meu Solfier, que me amou!”

E com aquele gigantesco falo em riste

Em minha direção à cama avançou;

Sem titubear, uma estátua agarrei

E até desmaiar na cabeça o golpeei.

XXXII

Contemplei-o no próprio sangue exaurido,

Num misto de repulsa, raiva e pesar.

“Enganado por um travesti! Pervertido!

Tudo em vão!”—Só nisto podia pensar.

E, assim, pela primeira vez acometido

Pela vergonha, para trás quis deixar

Tudo aquilo a carregar recordações

De meu fracasso e de minhas decepções.

XXXIII

Carregando apenas a roupa que vestia,

Corri até onde meu corpo aguentasse –

Sei que corri até despontar o dia,

Sem descanso, e nem que para trás olhasse.

Onde queria chegar nem sequer sabia,

Até que o que restou de força me deixasse

E, incapaz de em qualquer coisa pensar,

Se lembro-me bem acabei por desmaiar.

XXXIV

Quando acordei vi-me num lugar diferente –

Num confortável leito fora deitado.

Numa cadeira, a olhar-me gentilmente,

Um velho de hábito sentava-se a meu lado.

“Acordaste”, disse-me educadamente,

“Dois dias depois que foste encontrado

Por um de nossos valorosos irmãos,

Que trouxe-o para cá com suas próprias mãos.”

XXXV

A julgar pelos ares rijos, monacais

Daquela sala, percebi que era um mosteiro.

“Cometi, abade, pecados mortais –

Gostaria de confessar-me…”—“Mas primeiro”,

Interrompeu-me o santo homem, “fique em paz

Consigo mesmo; após melhorar por inteiro

Podes contar-me a fonte de tua aflição.”

E, retirando-se, entregou-me à solidão.

XXXVI

Não levou tanto tempo até que, saudável

Uma vez mais, lesto fui me encontrar

Com aquele bondoso abade venerável,

E meus erros, contrito, lhe confessar.

Admoestou-me, ora severo, ora afável,

E entre seus monges findou por me sagrar:

Logo, Solfier ao mundo havia falecido

E só como “irmão Martinho” era conhecido.

XXXVII

E desde então meu convívio passou a ser

Em meio a tantos santos homens valorosos –

De anciãos que já creem além a Morte ver

A lindos efebos angelicais, formosos…

E entre tantos homens é normal haver

(Ainda mais se abstinentes e morosos)

Onde e quando menos se espera escondidos

Acólitos da seita dos invertidos.

XXXVIII

…E nela acabei por ser introduzido,

A princípio relutante e de má vontade –

Mas logo fui perceber, embevecido,

Que superavam de Vênus a beldade

Tantos daqueles rapazes… Escondido

Os amava com a mesma facilidade

Que, em minha cela, a Bíblia decorava,

Ou que com o cilício a carne macerava…

XXXIX

Vários anos se escoaram desde então,

E velho e decadente só posso legar

As páginas de minha honesta Confissão

Para que meus crimes possa eu expiar –

Da pobre Rosina parti o coração

E tarde, muito tarde, vim a constatar

Que os amores viris da Masculinidade

Mais prazer dão-me que a Feminilidade

XL

À qual feito um néscio a vida dediquei.

Ora! Se há dentre vós quem core de pudor

Ante meu autêntico relato, dizei:

Infinda é a sabedoria do Senhor,

Que a tudo e todos fez segundo sua Lei.

Boas são todas as obras do Criador!

Bem ou mal, criou Ele a nós, os transviados –

Por que tal fato a vós deixa tão chocados!?

XLI

Deus! Queira entre teus eleitos receber-nos –

À pobre Rosina, e também a mim.

Sem os grilhões do Gênero a constranger-nos

Felizes haveremos de ser enfim

Como espíritos no cosmo a envolver-nos

Um ao outro num amplexo sem fim –

Porém, se não há remédio para meu mal,

Que seja! Como pecador morro, afinal.

(São Carlos, 23 de novembro de 2022)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 06/01/2013
Reeditado em 30/03/2023
Código do texto: T4070771
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.