COMENTAIRÔNICOS VI

COMENTAIRÔNICOS VI

Eu não desejo ficar jovem novamente,

mas retomar o aspecto que eu tinha

há vinte anos, nessa antiga linha,

que foi sendo perdida, lentamente...

Quero os cabelos que, traiçoeiramente,

fez cair o xampu, calda inimiga,

a dentadura completa, torta e amiga,

mas que sabia mastigar perfeitamente.

Quero a vesícula que um dia me roubaram,

para depois de tê-la bem picada,

misturem com tomates na salada...

Eu quero a cor da barba que lavaram

e me deixaram branca e desbotada,

para marcar quantos anos já passaram...

COMENTAIRÔNICOS VII

Vou pôr botox nos meus ossos todos...

O rosto não precisa. Ainda lisas

permanecem as faces... Porém dores

me percorrem as juntas da velhice...

Assim como as rugas preenchidas

são, desses modernos artifícios,

calafetar eu vou as rachaduras

que sinto percorrer-me os tornozelos...

Esfacelados já estão meus joelhos

e os quadris se tornaram margarina:

as vértebras recobriram-se de cálcio.

Bicos de papagaio mostra a chapa

de raios-X que tirei há vários anos,

mesmo que o rosto continue sem ter pregas...

COMENTAIRÔNICOS VIII

Esse meu pai era cheio de manias;

nada fazia que demonstrar riqueza

pudesse aos olhos de sua congregação:

mais que tudo, importante era humildade.

Um tratamento ortodentário, em realidade,

pareceria a seu olhar ostentação,

ofenderia aos pobres, com certeza!

Uma coisa imperdoável nesses dias...

Assim, meus dentes permanecem tortos

cinquenta anos depois e eu mal sorria

da adolescência sensível no momento...

Pior seria que, surgido dentre os mortos,

ele me abrisse a boca (e é o que faria!),

para mostrar-me precisar de um tratamento!

COMENTAIRÔNICOS IX

Sou o único nesta casa a não fumar.

Tão logo eu, no trabalho tão ativo,

sou obrigado a ser assim passivo...

Tapar narinas e cessar de respirar

eu até gostaria. A coriza, a deslizar,

rapidamente surge a cada vivo

revolutear da fumaça. Se me esquivo,

devo da própria família me apartar...

Ainda bem que tirei radiografias

recentemente: meu peito está saudável

e nem sequer me afeta a sinusite...

Mas essa roda que me cerca há tantos dias

mais tarde ou cedo me fará mal inegável,

enquanto elas... nem sofrem de bronquite!...

COMENTAIRÔNICOS X

Quando contemplo a sífilis do céu,

no espalhafato dos parlapatões,

na concludência de antigos bobalhões,

e vejo as chagas pútridas ao léu,

quando retiro aos dogmas o véu

e beijo a hóstia morta de ilusões,

na farinha de sangue dos papões,

torno-me a vítima e sou meu próprio réu.

É por beber hissopo consagrado,

que cravo fundo as farpas desse arpéu,

na carne insana das palpitações,

no guarda-chuva desse céu furado,

quando contemplo, sob meu chapéu,

a marcha opaca das velhas procissões.

COMENTAIRÔNICOS XI

Eu sempre soube que era diferente

em muitas de minhas coisas. E que o anseio

com que meu peito se envolve, em seu receio,

não era igual aos desejos de outra gente.

Assim, é para um Deus onipotente

que me dirijo sempre e Nele creio,

mas a maneira com que me permeio

não é a mesma empregada mais frequente.

Vivo em meu corpo e só por ele sinto

e não consigo abraçar o imponderável,

por toda a abstração que isso requer.

E quando amor pela deidade eu pinto,

consigo só abranger o concretizável

e falo em Deus qual falaria de mulher...

COMENTAIRÔNICOS XII

Vocês que pensam conhecer inglês

e que traduzem, com vivacidade,

erro após erro, sem criticalidade,

que liberdade é essa de vocês!...

Vocês que pensam conhecer amor,

que dele falam com tranquilidade,

tolice após tolice, sem maldade,

como eu invejo tão simples sexor!...

Inglês sei bem melhor que até nativos,

que dirá de vocês, meus compatriotas!

Ao menos o bastante para as falhas

facilmente encontrar... Mas os altivos

meandros do amor com que me esgotas,

só conheci a golpes de navalhas!...

COMENTAIRÔNICOS XIII

Por vezes, afirmamos coisas tolas,

que não nos significam em absoluto:

são os momentos de pleno anacoluto,

em que a semântica nos capta em suas molas.

Por vezes, nos sentimos pombas-rolas,

a arrulhar tolices e até as escuto;

e ao sopesar da memória o peso bruto,

acho que escutas também e quero expô-las.

Porém passados anos, tais momentos

já se fizeram em gelo e fragmentaram,

sem que se derretesse a dor secreta...

Apenas guardo os velhos sentimentos,

cristais partidos de que me restaram

somente grãos de areia na ampulheta...

COMENTAIRÔNICOS XIV

Hoje eu me sinto um tanto amarfanhado:

passou o arado sobre meus cabelos,

desmazelando todos meus desvelos,

até sentir o próprio cérebro arroteado.

Talvez este processo desusado

dê semeadura para versos belos:

que novamente brotem mil castelos

de areia sob um sol desmesurado...

Algo passou por mim, sombria asa

de pássaro mortal e de rapina,

averiguando até que ponto estou maduro,

enquanto enfrento mais um mês de escuro,

para servir de refeição a quem me abrasa,

ao completar o ciclo de minha sina.

COMENTAIRÔNICOS XV

Dizem aí que o castigo anda a cavalo

para os malfeitos e que, bem depressa,

a cólera dos deuses, que não cessa,

cairá como um raio, em seu estalo...

Mas embora não cessem de contá-lo,

a coisa para mim é adversa,

a fúria do destino é mais dispersa

do que o sino da justiça, em seu badalo.

Na verdade, quem castiga somos nós

e os malfeitores vivem com alarde,

enquanto sofre a vítima a ferida...

Que o anfiteatro humano é mais atroz:

fere quem pode e assim, cedo ou mais tarde,

minha boa ação é que será punida!...

COMENTAIRÔNICOS XVI

A borrachinha velha que prendia

os meus originais, se rebentou...

Por longo tempo, sua função executou,

a preservar os rascunhos que escrevia...

Já duas vezes se rompeu; e eu via

esse momento em que o elástico esgotou...

Dois nós lhe fiz e assim se conservou:

que guardasse mais um pouco eu insistia...

O pobre elástico amarelo permanece,

prendendo agora os últimos cartões:

de duas séries, três poemas ainda restam...

E assim conservo, com avara prece,

essa presilha, até os últimos puxões

das ilusões que por nascer se aprestam...

COMENTAIRÔNICOS XVII

De dar conselhos não há fim, embora

quem saiba soluções de mais valia

abra uma empresa de consultoria

para vender a experiência de outra hora...

Isto até serve, quando se elabora

um plano para erguer alvenaria,

uma estratégia que mais lucro nos traria,

mais segurança que a possuída outrora.

Mas quando se refere a decisões,

de que dependeria toda a vida,

não há conselho que seja permanente.

Pois cada dia, novas ilusões

perpassam nosso olhar e têm guarida

tão só no coração do inconsequente...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 01/09/2011
Código do texto: T3195102
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