TRAMELAS & MAIS

TRAMELA I

Um lusitano queria trancar sua porta:

perdera a chave para a fechadura

e, num acesso de inspiração pura,

prendeu-lhe roda de madeira torta.

Mas esse giro que tal roda importa

mantinha a porta fechada e sempre dura.

Enraiveceu-se e, num ato de loucura,

deu um soco na madeira da comporta.

Ela rachou e assim, partiu-se ao meio...

Quando ficava só na vertical,

abria-se a porta sem dificuldade...

Porém se a girassem, sem receio,

deixada em posição horizontal,

ficava a porta trancada de verdade...

TRAMELA II

Maravilhou-se o português com sua invenção:

fez mais uma para o postigo da janela;

para a porta dos fundos, coisa bela,

e até prendeu com outra o seu portão!...

Pois bem depressa isso chamou a atenção:

e como tinha o sobrenome de Tramela,

os seus vizinhos, sem qualquer balela,

passaram a encomendar-lhe uma porção.

Até que veio um comerciante e encomendou

mil e quinhentas tramelas de uma vez...

O lusitano enfureceu-se na ocasião

e o comerciante quase maltratou:

"Mas eu só quero ser o seu freguês!"

"O que tu queres, é rebentar-me a mão!..."

TRAMELA III

"Mas estás doido, Manuel! Se me bateres,

tua mão poderá ser machucada,

mas sou eu que vou ficar de cara inchada!

Como podes, então, isso dizeres...?"

"Pois então? Poucas faço, com prazeres:

recorto a roda e deixo pendurada

numa parede. Depois dou-lhe uma pancada

com o punho, para a tramela teres...

"Ela se racha em duas, sem emendas;

mas o meu punho fica mal disposto,

não estás vendo como está arranhado...?"

E desse modo, não se acertaram vendas,

"nas lindas tardes de agosto, ao sol posto,"

como cantavam naquele velho fado...

IGREJA BRANCA I (12 mar 11)

O branco sob a sombra se azuleja...

Essa igreja que pretende ser barroca,

é mais desse italiano, que se aloca

no século dezoito, em que se enseja

a influência salesiana. O sol dardeja

sem grande ardor e a ideia que se invoca

é de manhã de inverno. Quem enfoca

mais quer canteiro em que o amarelo adeja

do que o alto da torre, recortado...

Na fachada, os dois nichos estão vazios:

ou retiraram as imagens, ou jamais

alguma se instalou, enquanto do outro lado,

um campanário mexicano afronta os brios

com badaladas ribombando nos quintais...

IGREJA BRANCA II

Porém à noite essa igreja se transforma,

iluminada por holofotes e lampiões.

De carrara revestiram-se os bastiões

e o alto de sua torre toma forma...

A alvenaria em mármore conforma

o efeito mágico das iluminações.

Agora entoam os sinos suas canções:

para a missa vespertina o povo torna.

Lá dentro, há luz. Aberta está a porta,

deixando ver a iconostase protetora;

entre os nichos vazios brilha um vitral.

É uma brancura viva, que conforta,

dessas silhuetas negras acolhedora,

posto de lado seu silêncio sepulcral.

IGREJA BRANCA III

Que diferença que provoca a luz!...

No meio às trevas, se salienta a igreja:

quase se escuta o órgão quando arqueja,

quase se vê o altar sob uma cruz!...

Enquanto à luz do dia, não seduz:

parece um mausoléu que assim se enseja;

o sol a banha, porém não a beija...

É inóspita mansão de santos nus!...

Sobre as cornijas os simples ornamentos

anjos tranquilos se tornam, calmamente:

foram chamados pelo badalar!...

Virou lugar em que se prestam juramentos,

nessa intenção de os manter eternamente,

até que a vida os leve a quebrantar...

LAMA SECA I (2008)

Tomei o meu caminho e serrei traves,

a construir uma nova moradia,

para quem meu amor mais merecia

e com as sobras, construí três naves...

Singrei os mares com a primeira e aves

se prenderam às velas, à porfia,

em busca de teu sexo: e a ventania

fez naufragar o barco. Fui às caves

em que o segundo barco me aguardava

e naveguei afoito, sangue a dentro,

para encontrar teu ventre e teu pulmão.

De novo, sossobrei. Só me restava

uma terceira nau. Voguei ao centro,

para ancorar-me em tua imaginação.

LAMA SECA II (15 mar 11)

Mas percorri tua mente, sem sentido,

sem encontrar ancoradouro ou cais,

teus pensamentos corriam em caudais:

em parte alguma descobri ser acolhido.

O encéfalo repeliu-me, malferido,

até chegar às fossas lacrimais.

Escorri pelas faces... Perpetuais

sulcos marcados de ilusão e olvido.

Mas, de tocaia, penetrei na comissura

de teus lábios, singrando pelo sal,

cada sopro de vento uma certeza,

cada doce saudade uma amargura,

mas a barreira dos dentes, afinal,

destroçou o meu lenho, sem defesa...

LAMA SECA III

E me afoguei assim, em tua saliva,

que nem sequer depois foi deglutida,

mas em capricho apenas foi cuspida,

num jato sem destino, em luz furtiva.

Espalhei-me na areia e a meiga diva

seguiu o seu destino, distraída,

sem notar a minha alma repelida,

deixada para trás a gota esquiva...

Somente a terra acolheu-me no caminho,

fiquei a rebrilhar, à luz do sol,

líquida flor que por amor não peca...

E que se evaporou, bem de mansinho,

até apagar-se o archote do farol,

nessa pocinha convertida em lama seca.

MANSOS CICLONES I (2008)

E quem diria que a mente tumefata

assim entrasse em plena erupção:

bolhas de versos no ardor da brotação

e a pele vai com elas, em cascata.

E fico assim, derme exposta, descoberto

a quem me queira ver ou infectar:

o coração se deixa machucar,

que o esterno já se foi e agora, aberto,

está à mercê de quem quiser mostrar-lhe amor

ou amizade, ou ódio, ou impudicícia,

meu coração no pus dessa malícia,

já que pousam sobre mim as varejeiras

da maldade, que adejam bem ligeiras,

quando percebem minha falta de pudor.

MANSOS CICLONES II (14 mar 11)

Numa cascata de mármore imperfeita

vejo minhalma, a jorrar em borbotões;

vejo poemas quais crateras de vulcões,

placas tectônicas de placidez desfeita.

Meu tsunami é interno, desta feita,

ao invés de me afogar em inundações,

ele explode, em dezenas de emoções,

no coração que a esfacelar sujeita.

Não são as flores mansas da delícia,

nem tampouco a melancólica elegia

ou, muito menos, a epopeia triunfante.

Essa poesia a mim não é propícia,

mas me desgasta a vida, em embolia,

como as garras aduncas de um gigante.

MANSOS CICLONES III

Não há prazer no que faço. É doloroso,

como há de ser o parto das mulheres,

segundo ouço dizer. Mas sem prazeres

pelo filho nascido, em fragoroso

instante de triunfo. É apenas fulgoroso,

numa explosão que vem de mil quereres,

num fragmento de todos os sofreres,

no coalescer de um verso primoroso,

mas que já nasce adulto. Não terei

esse prazer de educá-lo desde a infância,

nem o verei crescer na adolescência.

Pois os poemas que hoje enviarei

não me pertencem em qualquer instância,

só os dedos me rasgaram nessa urgência.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 07/07/2011
Código do texto: T3080276
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