(PAIZIN)
evém meu pai.
baixo, magro, cabelos alvados,
trás nos ombros
o peso pesado dos sessenta,
peso que se mostra de forma consistente
nos sulcos profundos da face,
como se um lápis descontrolado
a houvesse traçado em desalinho.
lembro-me bem pouco de sua mocidade
pois bem moço já não era, quando nasci.
serviçal incombatível,
esteve sempre a amparar nos braços
os menores da sorte,
com um prato na mão,
sempre que lhe pediam um pão.
não era de dar esmolas.
não, nunca foi.
procurou sempre com este gesto
"evitar alimentar o vício".
apenas uma ou duas exceções,
me faz lembrar sua mão estendida
dando a alguém uma nota de cem.
bastião lúcio era uma delas.
escorado numa cavadeira
- pois sofria de uma doença
que até hoje não pude entender o que fosse.
era infalível. de hora marcada.
todos os dias, por volta das três
lá vinha ele: "tô pidino unha ismola
pel'amor de deus".
e o sorriso largo,
brotando do lábio secionado,
abria-se todo bonachão,
para ouvir a pronta resposta de meu pai:
"pode pedir, bastião, eu não me importo".
os dois riam,
riam muito, e bastião agradecia em nome de deus.
evém meu pai.
não me lembro nunca
de tê-lo visto em rodas,
a não ser no pau-da-grosa
- vez por outra -
discutindo a política de cada hora.
poucos amigos;
odilon, a quem chamava de lão,
zezinho sujeira,
que não acreditava nunca,
ser aquilo que falávamos,
genuíno e milton vieira,
os donos do "partidinho"
e bastião lúcio,
de quem com certeza era amigo.
dividia os afazeres da oficina,
com a dedicação diuturna
aos assuntos da igreja:
"tá na hora da escola dominical".
"não me venham chegar atrasados".
"tá aqui o dinheiro da oferta".
e lá íamos todos;
lição estudada,
oferta no bolso
- a roupa de domingo, sempre contava com um bolsinho,
exceção rara, nos poucos panos que tínhamos.
todos os pontos
no diário do professor.
na frente saía, em todos os aspectos.
sempre esteve pronto.
sempre andou na frente;
na escola nem se diga.
resolveu voltar, depois de anos,
seis filhos e muitos rádios prá consertar.
lá ia ele.
matemática, sem discussão.
só competia com tio uzias, seu irmão.
geografia, poxa, nada melhor
que observar a lua,
numa noite clara,
e imaginar sua rota,
enquanto pedalava sua "monark 61"
- que sempre aparecia com um enguiço
quando a apanhávamos para uma roletada às escondidas -
e chegar na sala e faturar o ponto.
português, não dava conta.
buscava sempre um auxílio qualquer,
ora de zane, grande mestra,
ora de alguém outro.
evém meu pai.
de brincadeira nunca foi.
nunca, nunca rolou no chão,
jogou 'birosca', chutou 'mamucha',
ou toureou conosco.
andou uma vez
de perna-de-pau
mas nem sei quando.
certa vez o vi muito triste.
lembro-me bem dos clamores
no silêncio de altas horas,
em suspiros entrecortados
no meio da noite,
e o sibilar claro e audível
alta madrugada:
"oh! deus!"
nunca o vi xingando nome feio,
a não ser "merda"
quando algo não dava certo.
evém meu pai.
os sulcos acentuados da face
contam histórias
de uma vida marcada.
não sei se teve amores fortes,
paixões fulgurantes...
nunca foi de falar co'a gente.
sempre sério.
sempre rígido.
exigente.
jogo de futebol, nem de longe!
evém meu pai.
os netos lhe cercam hoje.
querem histórias,
nas quais é mestre.
principalmente,
quando se trata do povo judeu.
sabe tudo!
sorri e se enche,
quando lhe chamam de paizinho.
vovô paizinho;
é assim que lhe chamam.
deixou que voasse,
meu velho pai,
em tom despercebido,
o "paizinho"
que sempre lhe dedicamos.
e hoje ri e rola,
canta e conta histórias
vive e ri de nossas aventuras,
aventuras que lhe negamos,
ou que nos negara, em todos os anos.
mas evém meu pai.
evém sorrindo,
ansioso.
sorri muito quando nos vê
abraça-nos em silêncio.
"como vai?"
"como vai?"
dá muita vontade de chorar
ao sentir que nos amamos muito
sem nada falar,
e ao sentir que em nenhum momento,
nós pudemos ser crianças juntos.
(texto escrito pelos idos dos anos 80)