Retrato de família
Minha mãe
Sempre dizia
Que éramos pobres
Porém, honestos.
Trabalhou a vida toda
Sem nenhum tostão juntar.
Acabou partindo,
Como, nesse mundo, chegou,
Sem nada.
Só um restinho de gente.
Num corpo franzino.
E enquanto viva,
Seus olhos muito diziam!
Era só eu que via?
Por ser filha mais velha?
E nos seus olhos só se via a dor.
Mesmo quando ela sorria,
Nos seus olhos só se via a dor.
A mesma dor,
A velha dor,
Companheira inseparável.
Na maior parte de sua vida,
Nem amor cultivou.
Vida cruel, vida de cão.
Amou animais e flores
Mais do que pessoas.
Fez pelos filhos
O que pôde enquanto éramos miúdos
Pois, logo, muito cedo,
Cada um tomou
Rumo diferente
Nesse mundão
De gentes e deuses.
O tempo une e afasta.
No nosso caso afastou.
Cada um mais caracol que o outro.
Cada carapaça mais bem construída que a do outro.
Guardando tudo o que quando guardado adoece a toda gente.
Ninguém escapa.
Muitas vezes sinto saudades
Dos tempos de infância.
Em que comíamos
Na mesma mesa
Porque também compartilhávamos a fome que insistia em nos devorar de dentro pra fora.
E chorávamos os mesmos prantos.
Escondíamos segredos bobos de crianças
Para evitar as bofetadas,
As surras insanas.
Éramos unidos, nós quatro.
Nos protegíamos
Como crianças desamparadas.
O que nos unia
Eram as brincadeiras
Improvisadas,
Os docinhos divididos
Bem pequenininhos
Para não faltar para ninguém.
Os ataques frequentes de epilepsia do irmão caçula.
O medo da morte.
Da solidão.
O medo de perder
O pouco que tínhamos.
E perdemos.
E sofremos.
Cada um do seu próprio jeito.
Um calou mais fundo do que o outro.
Hoje somos quase mudos.
Quase desconhecidos.