O retrato lá de casa
O retrato lá de casa
Acordar com o barulho no terreiro
De um cachorro que já madrugou latindo
A casaca dando um show no tamarindo
Quatro horas, com seu despertar certeiro
Ouço o bode berrando no chiqueiro
E o som da centelha no fogão
Pra o café, a primeira refeição
Em seguida, bate a porta no portal
É papai já saindo pra o curral
Pra cumprir sua eterna devoção
Prepara tudo na noite anterior
E organiza pertinho da janela
Uma jarra, caçarola ou uma panela
Uma corda e também arreador
Impossível dizer que não deixou
Uma lata de açúcar e seu café
Sua caneca preferida, uma colher
Tudo segue uma ordem com jeitinho
Diz o chiado da chinela devagarinho
Que o espaço entre os passos é só de um pé
Quatro e pouco da manhã é desse jeito
Pai começa a brigar lá no curral
Usa força e um pedaço de pau
E retira o bezerro lá do peito
Que reluta, contestando seu direito
E embora no pescoço sinta dor
Puxa a vaca forçando o arreador
Regurgita do leite que bebeu
Papai tira uma parte e deixa o seu
E vai pra próxima como tudo começou
Pelas ondas de um rádio campeão
Uma música sertaneja de respeito
Toca a alma, uma saudade invade o peito
Com histórias de amor e de sertão
De repente, sobre as chamas do fogão
Um café, um beiju ou um cuscuz
Um chá, leite puro ou com mastruz
Mãe prepara, com tamanha eficiência
Que não sei de onde brota paciência
Deve ser inspirada por Jesus
Onze horas o almoço já tá feito
Esperando que pai chegue do roçado
Doze horas, chega ele bem cansado
E todo dia ele faz do mesmo jeito
Sua tanto que o suor corre no peito
Não reclama, não mal diz da sua sorte
Corpo curvo, tão pequeno mas de um porte
Que pra todos é exemplo a ser seguido
E minha maior riqueza é ter nascido
De um casal, batalhador e muito forte.
A comida no inverno é diferente
Requeijão, coalhada e milho assado
Tudo orgânico, nem se fala em enlatado
Mamãe cuida de tudo ali pra gente
A lembrança do passado tá presente
Bate tanto machucando o pensamento
E o sabor de feijão com nata e coentro
É tão forte que às vezes sinto o cheiro
Afirmando que amor junto ao tempero
É a mais pura receita em todo tempo