carta sem correspondência nº1
já escrevi pra você, já quis escrever pra você, já quis te conhecer, já quis te matar, já quis me livrar de qualquer semelhança que você poderia ter deixado em mim, já quis me limpar de toda pequena sujeira que você tenha deixado em mim, mas não consigo me lembrar de como você era antes de se fundir em mim, antes que fosse tarde demais. eu não estava aqui antes, e depois de você eu nunca mais estive em lugar nenhum que não fosse na sua sombra.
porque você nunca vem atrás de mim? eu saio querendo descobrir quem eu sou e é como se cada esquina que eu virasse e todo homem que eu visse trouxesse iluminado pelo sol a sua sombra. é como se você estivesse em todo lugar e em todos os homens.
os homens me dão tesão, os homens me dão amor, os homens me dão asco, os homens me dão a mão e me mandam lamber seus pés.
você não sabe o que eu passo todos os dias, não sabe como é me arrastar até o mais longe daquilo que me ronda, tenho medo e tenho medo. tudo que sei de você, entre várias outras mentiras, é que você sabe muito bem fugir. e olha eu aqui fugindo como se fosse uma herança no meu dna. semelhanças? nem sei a cor dos seus olhos, nem sei se tem na perna uma grande mancha espalhada sobre a coxa como a minha. mas se acaso você tiver, saiba que quando eu era pequeno, menino moleque, e você devia estar uns 4 anos de distância de mim, minha mãe em um dia qualquer no banho pegou uma escova de lavar roupa e tentou me limpar, se culpando por ser uma mãe ruim, que não tinha percebido tamanha sujeira em minha pele, então se acaso essa tenha sido uma herança sua em mim, saiba que minha mãe tentou arrancar de mim, me fazendo esquecer o que na época eu nem imaginaria. caso eu esteja só falando bobeira me perdoe. nunca sei direito como escrever essas coisas, cartas, bilhete, poema, chame como quiser.
é tão confuso aqui, e eu não sei o que eu quero e quem eu sou. você não imagina a dor que lateja em meu corpo toda vez que você ressuscita em minhas memórias. não queria ter que viver assim, não queria que fosse tão confuso. queria poder sentar com você em uma mesa e te ouvir falar, e te ouvir cantar, e te ver dançar.
você certamente se assustaria com o que sobrou de mim.
o que o cansaço não conseguiu vencer, o que ainda luta através da poeira e da dor do tempo, eu mesmo me estranho todos os dias, choro perdidamente porque não sei suportar tamanha dor. o amor não era para ser um fardo. já não te espero mais, nem imagino como você é. mas te desejo tudo que me dá, me deu e me dará. te desejo liberdade e amor.
quem sabe um dia você me ouça e me veja cantar e me veja dançar.
até lá eu sigo escrevendo cartas sem correspondências.