1h30m de viagem pra matar
nós tínhamos uma hora e meia de viagem para matar,
eu e o meu pai.
na noite anterior, sem conseguir pregar os olhos,
planejei até os mínimos detalhes do nosso trajeto.
eu havia acabado de ver o meu avô ser sepultado
e isso me levou a pensar que
outra viagem silenciosa com o meu velho seria deprimente demais
além de um desrespeito à brevidade da vida.
eu precisava que aquilo funcionasse, então pensei
eu posso perguntar sobre os mesmos três CDs que ele carrega desde que eu era criança
ou posso falar sobre como acho que a faculdade vai me exaustar com o retorno das aulas presenciais;
talvez eu deva demonstrar interesse pelo que ele pretende fazer no terreno recém-adquirido
ou ceder e dizer que finalmente quero que ele me ensine a dirigir
por mais que eu esteja me lixando para como guiar um carro.
a manhã logo chegou e eu mal havia dormido
o cansaço, entretanto, em nada me abatia
pois nós tínhamos uma hora e meia de viagem para matar,
eu e o meu pai.
pouco antes de sairmos, ele me olhou da cabeça aos pés
e congelou ao ver os chinelos que eu estava calçando
“não tem nenhum tênis que possa pôr? as pessoas se vestem bem quando vão àquele lugar”
e eu poderia ter tomado isso como uma ofensa, mas
estou ciente do meu desleixo, jamais o neguei;
ri disso e não prolonguei o assunto.
enfim entramos no carro e ganhamos a estrada quando
de repente, o seu telefone toca
de repente, estamos desviando do caminho original e encostando na rodoviária
“tenho outras pessoas pra levar, mas vou arranjar um carro pra você”, ele disse
depois tirou duas notas da carteira e as colocou na minha mão
“parece que a sua companhia vale trinta reais, pai”, eu pensei
enquanto as olhava e tentava disfarçar o aborrecimento.
de repente, um ato de vingança entrou em ação:
aquela uma hora e meia de viagem
com dois estranhos em um carro
estava ali exclusivamente para me matar
e ela fez o seu serviço com uma incrível maestria.