SALINAS DAS MARGARIDAS
(versos dedicados à minha sobrinha Emanuele Menezes Couto, quando da sua primeira viagem comigo à Salinas das Margaridas, nos seus dois anos de idade...)
Salinas das Margaridas era antigamente,
Um recanto perdido do Recôncavo Baiano
Onde, quando criança, eu passava férias...
Lembro-me da primeira vez em que lá estive
Na inocência pura dos meus cinco anos de idade
Trocando os ares pesados e ruidosos da cidade
Por aquela calma inesquecida – aquelas praias
Também inesquecidas
Quando nas suas águas tranquilas aprendi a nadar
Lembro-me que passeava absorto
Nas suas areias brancas e cheias de conchas,
Queimando o meu corpo nu – que velejava –
Nas primas asas da Poesia!... e eu ia,
Andava... e andava sob o sol
Às vezes até o dia todo, só chegando às tardinhas,
No mesmo horário em que chegava a lancha Albatroz
A qual trazia para mim um romantismo belo
E eu corria célere em direção à ponte
Aquela ponte imensa, de madeira, cheia de trilhos
Por onde corriam os troles – cheios de dendê –
Ou de moleques iguais a mim
Os quais corriam de quaisquer formas
Só para ver a hora mágica de a lancha chegar!...
Era impressionante nos meus tempos de criança,
A chegada solene da lancha Albatroz
Que vinha romanticamente singrando as águas
Da Baia de Todos os Santos, vinda de Salvador,
Primeiro o Mestre Moreno jogava as cordas, gritava,
Gesticulava arfante, suado,
E depois, quando a lancha Albatroz encontrava-se atracada,
Ele, com muito cuidado, jogava a prancha,
Então, os passageiros saiam entre vivas
E bater de palmas!
Logo apareciam os carregadores, o Vida Arrumada e o Caçula,
Este último misterioso e imerso na sua surdez
Fazendo os seus gestos quase magnéticos...
Da ponte até o que chamávamos de centro
De Salinas das Margaridas,
Era uma caminhada inesquecida sob o sol
Do crepúsculo,
Que ia se avermelhando e chorando as suas agonias
Espreguiçando-se nos céus cansados
Naquelas horas poéticas do dia!
E os viajantes recém-chegados extasiados
Carregavam as suas malas pequenas,
As suas crianças de braço, os seus sacos,
Enquanto sem demonstrar cansaços,
Os carroceiros tangiam os seus cavalos
Atrelados em carroças bonitas,
Animais donos de uma índole preguiçosa
Que resfolegavam contra o carroceiro
E os seus gritos...
Quando mal davam seis horas da tarde,
A Hora do Ângelus no espaço entoava
Eu chegava escondido dentro de casa
Entrando silencioso pelas portas dos fundos,
A minha Mãe esperava-me com uma cara séria
E um prato de mingau nas mãos
Enquanto os meus irmãos pequenos – de banho tomado –
Brincavam com as conchas por cima das esteiras
Que a minha Mãe e a Flora estiravam pelo chão.
Era um momento solene – a Hora do Ângelus –
Quando cheio de medos e receios – eu chegava em casa!
E na Igreja bem perto (junto de uma casa mal-assombrada!)
Os sinos tocavam as seis badaladas da AVE MARIA!
A minha Mãe e a Flora, também a Maria de Caçula,
Acendiam os candeeiros e aprontavam o café-com-leite
Que eu tomava na minha xícara verde, de esmalte,
E a minha irmã Maria do Carmo, tomava na sua xícara azul,
Também de esmalte,
E o meu irmão João Bahia, pequenino, também tomava
O seu café-com-leite na sua xícara marrom,
De esmalte...
Enquanto a minha irmã Fátima Bahia, a Ninha,
Por ser ainda um bebê, tomava o seu mingau na mamadeira!
E ali iluminados pela luz bruxuleantes dos candeeiros,
Pois a luz elétrica em Salinas das Margaridas
Naquela época nem existia,
Ficávamos a ouvir estórias patéticas
Contadas pela Flora e pela Maria de Caçula,
Eram casos fantásticos de lobisomens
E estórias arrepiantes de almas e assombração...
Naqueles meus tempos de criança
A poluição naquelas bandas ainda não existia
E Salinas das Margaridas era um foco único de belezas
Que aos meus olhos verdes e extasiados - viravam Poesias!
Saía-se descalço por suas ruas estreitas
De casas baixas e coloridas,
Forradas no seu chão com areias da praia
E folhas de pitangas...
E pelas suas ruas apertadas e nuas – sem calçamento –
Andávamos atoa pisando conchas, buracos de guaiamuns,
Tocas de caranguejos,
Afundávamos os pés na lama do mangue
Até os joelhos,
Tomávamos aqueles eternos aguaceiros de verão,
Corríamos contentes para a ponte, como proteção,
Quando haviam trovoadas,
Pois ali protegidos da chuva grossa que caía,
Ficávamos a olhar os riscos e os clarões
Dos raios pavorosos e relâmpagos encantadores
Que Deus desenhava nas toalhas dos céus...
... eu gostava de andar sozinho...
Sempre gostei de andar sozinho!
De trole ou a pé, sobre os trilhos do trem,
Às vezes roubava um bonde verde e antigo
O qual pertencia à Companhia de Salinas
E ia sozinho e maravilhado passear por ai...
O sol, o azul do céu e o mato em redor
Eram as minhas únicas companhias
E eu manejava esse bonde antigo e gasto
Como se ele fosse para mim um brinquedo familiar
Enquanto ao longe – bem distante – eu via o mar
Por trás das dunas brancas e cristaláceas de sal
Para os lados da Ilha de Itaparica,
Enquanto os donos do bonde, furiosos,
Esperavam-me putos da vida, em Salinas das Margaridas...
Eu voltava extasiado daqueles passeios
Só com a diferença que não ia direto para Salinas,
Pois quando a viagem de volta
Já se encontrava pelo meio do percurso
Eu saltava do bonde!!
Aquele bonde verde e antigo das minhas pintanças,
E o deixava a seguir sozinho sobre os trilhos
Absolutamente – sem controle! –
Numa velocidade muitas vezes desenfreada
E eu, descarado, tinha invertido antes
O sentindo da linha
Mexendo nas agulhas enferrujadas
E o meu bonde verde e bonito
Chegava ruidoso e singelo
Invadindo os fundos da casa do Tenente Ousinho!
Ou quando não eu o deixava seguir direto
Em direção à ponte
E o meu bonde descarrilhado e contente
Armava a maior confusão na praça – cheia de gente –
Quando colidia violento com uma porção de troles
Carregados de sal – que vinham em sentido contrário –
...
Quando a confusão estava formada
Eu passava escondido pelos fundos das casas
E ia ver as filhas bonitas
Do Dr. Fernando e da Dona Antonira!
Eram tantas filhas bonitas e morenas
Que eu hoje só guardo na memória
O nome de uma delas: DORINHA!
E namorávamos com os nossos olhos, distantes,
Enquanto eu mergulhava ao lado da varanda
Da casa dela e saia a nadar,
Mas ficava a imaginar aquele par de coxas
Morenas e gritantes,
Às quais pareciam que ficavam a me chamar
Dos fundos da casa dela...
A Dorinha quando criança era o diabo!
E eu não saia da casa da Dona Antonira!
Hoje, Salinas das Margaridas toda mudou!
A maioria das pessoas amigas estão mortas
Ou inutilizadas por bombas de pesca,
Cachaça, ou em noites e madrugadas perdidas
Na vigília da pesca, à cata do peixe!
Os quais, pelas suas águas poluídas e paradas,
Não passam mais...
O acelerado progresso e a louca civilização
Fizeram de Salinas das Margaridas
UM LUGAR QUE NÃO MAIS EXISTE!
A não ser na nossa imaginação...
As Casas da Ponte estão abandonadas, caídas,
E a casa de avarandado – poética e branca –
Onde morava a Dorinha,
Quanto àquela antes romântica morada
Hoje só restam as paredes altas,
Desnudas e descascadas,
E no fundo do quintal uma espessa mata
Que o mar invade silencioso
Quando a noite chega...
Os depósitos de sal, os seus Barracões,
Foram tirados ao chão
Os trilhos, troles e bondes destruídos
E arrancados de circulação
Em nome do progresso...
Nem mesmo as altas dunas de sal
Não existem mais não!
A prefeitura atual asfaltou
A areia branca e virgem das suas estradas,
Colocou um serviço de Táxis no lugar das carroças,
Aposentando por invalidez os românticos carroceiros
E as suas carroças e cavalos bonitos!
Tiraram a lancha Albatroz da linha
E puseram lentos, pesados e estressantes FERRYS-BOATS!
Desmancharam a Ponte antiga de madeira
Arrancaram os trilhos e os troles antigos
E hoje ao seu lado está a estrutura morta
De cimento armado
Da futura ponte do lugar...
Desalojaram os carregadores das Casas da Ponte,
Botaram para fora o Vida Arrumada
O qual nos dias de hoje vegeta com a mente cansada
Pelas ruas ensolaradas e hoje inóspitas do lugar;
Botaram para a rua da amargura
Também o meu amigo, o Caçula, o surdo,
E a sua fiel companheira Maria,
Aquela Maria tão dedicada e afetuosa
Que tanto ajudou a minha Mãe
Ana Bahia Menezes
Nas minhas trapalhadas de criança!
Hoje?... O Caçula é um bêbado vadio
Um apostador soturno das rinhas de galo
Do lugarejo próximo chamado Encarnação.
A Maria?... Uma mendiga suave e trôpega
Sem forças mesmo para lavar uma roupa
E que hoje vive a pedir esmolas
Às pessoas estranhas que passam...
Versos escritos no lugarejo de Salinas das Margaridas – BAHIA, no mês de janeiro de 1982.