REMINISCÊNCIAS
REMINISCÊNCIAS
Com ansiedade sigo a velha estrada
Abandonada, com doce esperança
De ainda rever o meu sertão amado
Como deixado havia quando criança.
Tanto abandono o coração compunge,
E me constrange grande dor na alma.
Chego à porteira e vejo desolado
Toda a baixada em matagal, sem grama.
Ali era o campo. Às tardes de domingo,
Com os amigos e a rapaziada,
Jogavam bola meus irmãos já moços
Entre o alvoroço da raparigada.
Caminho a esmo pelo mato inculto
E meio oculto o ingazeiro encontro.
Das laranjeiras as nuas ramagens
Mais me constrangem e me fazem em pranto.
Do alto da lomba, esperançoso, avisto
O negro teto a chaminé ruída.
E, já mais perto, o velho limoeiro,
O pessegueiro e o solar querido.
Um sobressalto me estremece ao vê-lo,
Pelas janelas o vazio lá dentro,
Empurro a porta e ouço seu rangido,
De dor transido o coração eu entro.
Na sala estreita, imóvel, fico em pranto,
Revendo os cantos onde eu me entretinha.
O chão de tábuas meio apodrecido,
E lá, fendido, o fogão a lenha.
Ah, quantas vezes, se fazia frio,
Noites a fio me empoleirava à beira,
Ouvindo estórias que a vovó contava,
E me esquentava ao fogo da lareira!
Ao lado, a tábua onde as irmãs, já moças,
Lavavam louça no alguidar enorme
Ou saborosos pratos preparavam
Que eu devorava mesmo sem ter fome.
Frontais de tábuas isolando o quarto
Onde, por certo, fomos nós gerados,
Os treze filhos da união conjugal
E amor sem par de nossos pais amados.
No negro teto só de telhas-vãs,
Os picumãs lá pendurados no alto
Presos aos caibros e aos linhamentos,
Balançam lentos longas tiras soltas.
E longo tempo fico a relembrar
Cada lugar: a mesa enorme e os bancos,
Pela parede entre a sala e o quarto,
Ficavam quadros de fotos e santos.
Entro no quarto e julgo ver ainda
Papai dormindo a ressonar deitado
Ou a caminha em que eu dormia, quando
Criança ainda, da mamãe ao lado.
Pela janela vejo o chão do engenho
E me detenho a olhar o matagal
Cobrindo tudo, e grandes espinheiros
No bagaceiro sobre o vassoural.
Meio ruído, o paredão de pedras
Entre as moendas e o chão do forno,
Alguns esteios com viçosas heras,
Como que à espera de nosso retorno.
Como eu recordo os dias de açucrada!
Papai suado a abanar com gosto
Caldas ferventes aos tabiques cheias,
E volta e meia ele enxugava o rosto.
Me comprazia chupar cana-roxa
Das que nos feixes poucas se escondiam,
Comer melado ao cocho c'os dedinhos
Ou nas pazinhas que os irmãos faziam.
Feixes de cana enchiam todo o engenho.
No árduo empenho, meus irmãos moíam,
De novo enchendo o cocho de garapa,
Que em catarata da calha escorria.
Desço à varanda estreita e pequeninha
Onde a dindinha e as irmãs dormiam.
Um grande armário separava os quartos
De uma e outras como lhes convinha.
A porta aberta fez-me ver lá fora,
Por entre amoras verdes e o cipoal,
Mourões da cerca, os pessegueiros mortos
E esteios altos do velho curral.
Em frente à porta, o paiol de milho,
Onde os lombilhos e arreamentos
Eram guardados, ainda sobranceiro,
Resiste inteiro aos temporais e aos ventos.
Metade dele se fazia o quarto
De três ou quatro irmãos mais velhos, pois
Dentro de casa todos não cabiam,
E ali dormiam eles dois a dois.
Salto ao terreiro, empurro a porta e entro.
Tudo como antes: ali estão as camas,
O caixão grande de farinha aberto...
E me despertam mais saudades na alma.
Em frente à casa vou para o terreiro
Dos meus primeiros passos ainda incertos
Entre marrecos, patos e galinhas
Que mamãe tinha pra nos dar sustento.
Aqui eu brincava alegre c'os boizinhos
E meus carrinhos que eram por mim feitos
Com dois sabugos, rodas de batata,
Tampas de lata e cascas de palmito.
Olho o barranco lateral à entrada.
Mamãe cansada do exaustivo dia,
Ali sentava, e sobre seu regaço,
Dela o pai-nosso e o santo-anjo ouvia.
O olhar se espraia pelo morro abaixo
Até o riacho e mais além na encosta.
Onde era pasto, agora é capoeirão
De vassourões e taquarais sem conta!
Além ficava o engenho de farinha,
Palco de minhas tantas travessuras
No raspador, nos tipitis, na prensa
Com outras crianças. Ah, que gostosura!
À roda-d'água eu ia quantas vezes
Sem que alguém visse, e agarrado aos braços,
Nela me punha e dava tantas voltas
E cambalhotas no ar acima e abaixo.
Lá nem me atrevo a ir já pressentindo
Tudo sumindo entre as vassouras bravas.
Só a cachoeira a murmurar suave
Ainda se ouve, onde a mamãe lavava.
Atrás da casa novo sobressalto
Ao ver em mato todo o velho chão
Do rancho enorme onde eram o alambique,
O forno, a pipa e os cochos de vinhão.
Com muito asseio, roscas de polvilho
E pães de milho em folhas de caité,
No forno imenso minha irmã cozia,
Depois servia à mesa no café.
Nas noites frias, cada qual ligeiro
Junto ao braseiro procurava assento
Para ouvir casos, adivinhações,
De assombrações outras lorotas tantas.
Assar batatas e aipim na brasa,
Depois gulosos, comer com coalhada
Enquanto, ao fogo, o tachadão fervia
Pra no outro dia tratar a porcada.
Quando me volto para a despedida,
Vejo partido, em borda azul, um prato.
Ele era o meu, e eu o quebrei um dia,
Quando comia nele meu repasto.
Entro na casa e, demoradamente,
Percorro os cantos em procura ansiosa
De algo perdido ali por mim na infância,
Para lembrança nele ter preciosa.
Na prateleira, a velha lamparina,
Restos de lenha sobre cinzas frias
Foi o que restou dos tempos de menino,
Quando, traquinas, por aqui corria.
Tento pegá-la para a ter comigo.
Mas, oh castigo a tal profanação!
Desfez-se toda em monte de ferrugem,
Tal como as cinzas frias no fogão.
Então, com dor, dirijo o adeus final
Ao santo lar primeiro e tão querido,
Que nunca mais verei. Só ternamente
Tê-lo-ei na mente até o fim da vida.
VOCÁBULOS REGIONAIS:
açucrada - fabrico do açúcar.
pequeninha - pequenina.
tabique - complemento com tábuas de madeira na borda do forno, para
aumenta-lhe a capacidade.
dindinha - avó.
vinhão - vinhoto; garapa em fermentação, da qual se extrai a
cachaça.
caité - planta ornamental de folhas uninervadas (semelhantes às da
bananeira) de um metro ou mais de comprimento.
Quem quiser apreciar algumas de minhas telas acesse o blog atelierpacorrea.blogspot.com