Vigi Maria
Do Capítulo da Família
Maria era sozinha,
Maria era viúva,
Mulata, alta,
de cabelos incricrilhados,
Filha de preta com branco.
Maria era mãe de Abel - mãe de Deusa.
Maria sorria da piada que é a vida,
Humilhada por sua falta de recurso,
não aprendeu a ler,
não aprendeu a escrever poesia.
Dona Maria,
foi poesia.
Conhecia lendas, cantigas e danças de roda,
conhecia ladainhas das lavadeiras à beira do rio,
conhecia, as estórias das moças que iam a igreja somente pra ver moço bonito,
conhecia as prosas das beatas - piadas engraçadas de se lembrar - e contava e cantava,
contava-se que na igreja a comadre muito assanhada apareceu com a saia levantada, as beatas ao perceberem o esquecimento no meio da reza pra ela se avexar e se ajeitar catavam:
“Dona Maria rum rum da de fora, dona Maria rum rum tá de fora!”
E a comadre respondia também em ladainha:
“Divera comadre que vi foi agora, divera comadre que vi foi agora.”
Dona Maria sorria das lembranças.
Conhecia e contava estórias antigas de assombração,
conhecia e cantava cantigas antigas e de ninar,
conhecia estórias que geraram as ideias de bruxas, e as história do surgimento dos nomes mais feios de chamar,
Vigi Maria!
Arrepiava a alma chamar nome feio, ela personificava a palavra.
Em sua existência simples,
Foi costureira das bonecas da neta,
E cantava Maracangalha pra neta não chorar:
*"Eu vou pra Maracangalha, eu vou,
Eu vou de chapéu de palha, eu vou,
Se Anália não quiser ir, eu vou só
Eu vou só, eu vou só
Se Anália não quiser eu vou só...”
Ensinou as cores a neta a colorir desenhos e nas brincadeiras a representar.
Guardiã incondicional dos filhos,
Dona Maria foi valente... enquanto viveu e escolheu,
e por conta própria, no fim da vida pedir guarida, longe dos seus...
não entenderam, reclamaram, choraram... mas, Maria, só queria a liberdade de no fim
bem no finzinho de sua estória ter a liberdade de ser Ser,
Maria não morreu,
ficou no coração, na lembrança e em uma parte do mundo que nunca por si só conheceu...
Maria vive, na poesia, da neta que nunca lhe esqueceu.
* Dorival Cayme.
Brasília - DF, 2011.
Do imaginário poético.