O Medo O Demo E A Liberdade

O Medo fez aliança

Com uma criança

Que não havia nascido

O Demo ocupou

Os espaços sutis

Antes que a mãe

A tivesse parido

Fez de conta

Tomou de conta

O ambiente externo

Como se fosse aliado

Como se fosse fraterno

Fechou-lhe a porta

Da percepção do mundo

De outro mundo

Que não fosse o inferno

Ninava o menino no regaço materno

Saído do berço amniótico

Berrou incômodo no quarto poluído

A mulher anoiteceu com ele no colo

Foi à varanda, sentou na almofada

Excessiva demais em suas camadas

De sedas bordadas pelas memórias

Manifestos camuflados da maldição

Compulsória dos mais antigos ancestrais

Da história.

Mal tinha nascido

E já se sentia detido

Vítima do “pecado dos pais”

A criança cresceu

A decifrar os códigos

Dos sapatos, dos pratos

Vestidos, arquivos domésticos

Museus, múmias, panos e fósseis

Cercado que estava

Pela poeira passada

Que nela depositaram

As unhas, os dedos

Os anéis moedas

Cigarros e farpas

O menino sozinho queria

Fugir do Medo a impregnar

As roupas, as frutas, a água

Do banho a pele dos dedos

Desejava desenvolver-se

Desincluir-se dos ruídos

Do malfalar calamitoso

Dos Demos que habitam

As entranhas dos sinais

Mal tinha crescido

E já se sentia sumido

Vítima do “pecado dos pais”

Queria decifrar os códigos

Que há nos olhares, nas flores

Nos lacres pulsando medrosos

Nas frutas. No sorrir da mãe

Nos lábios de limão azedo

Vasos sanguíneos pulsando

Medrosos nos bicos dos seios

Um dia se perguntou

Da onde veio e por quê?

Nasceu de quem, para quê?

Que significa esse sertão

Essa rosa pulsando na mão

Mil perguntas sem respostas

Desencadearam-se na mente

Num dia sem compromisso

A paisagem a desfrutar-lhe

Contou de si para si mesmo

As suas perenes perplexidades

Qual sua pátria mãe?

De que serve a religião

Se o único templo de Deus

Não pode ser encontrado

Exceto em seu coração

Qualquer outro lugar é demais

Mal tinha crescido

E já se sentia inibido

Vítima do “pecado dos pais”

Que mulher será a mais adequada

A desfrutar em cada idade

Geológica: na juventude

Na vida adulta de sua história?

Que percepções terá de ter

Como vai se relacionar

Que estudos haverá de fazer?

As idéias de hoje e os costumes

De épocas tão passadas

Precisará ordená-los. E agora

Quem vai lhe valer?

Que pensamentos há de ter

Para não se sentir demasiado

Tolhido, rejeitado pelo mundo

Milenarmente distante de seus

Não queridos antepassados?

Tão longes, distantes demais

Mal tinha nascido o buço

E já se sentia agredido

Vítima do “pecado dos pais”

É preciso aprender. Como se

Concentrar nas respostas a essas

Perguntas no mundo globalizado

Demasiado apressado para lhe ver

Escravo produzindo horas

De trabalho e depois chegar em

Casa jantar e ver tv

Quem vai lhe ensinar o que é

Melhor ou não, senão ele mesmo?

O rapaz satanizado pela falta

De referências outras que lhe

Proporcionasse a compreensão mental

O verdadeiro prazer

Buscou inutilmente a coerente resposta

Descobriu que está sozinho

E que não há carinho desinteressado

Nesse viver estressado dos casais

Mal tinha amadurecido

E já se sentia tolhido

Vítima do “pecado dos pais”

E o menino sentiu-se traído

Não de todo perdido

No horizonte sem rumo

De múltiplas escolhas

De um falso saber.

A família e a escola

Não via a hora de

Fazê-las desaparecer.

E na mocidade não foi fácil

Saber que inexistem academias

De ensinar a viver.

Só ele poderia ajudar-se

A decifrar as cifras das tarefas

Do fazer e do quem faz

Mal tinha se curtido

E já se sentia perdido

Vítima do “pecado dos pais”

Concluiu por fim

Não haver respostas

Em lugar algum

Que nada poderia fazer

Ou dizer que fosse meu

Sua palavra não saía

Seu verbo inexistia

Tinha de aprender a criar

Uma voz que fosse sua

O vocábulo que fosse seu

Ninguém poderia ensinar nada

Precisava dar o primeiro passo

Criar as condições de caminhar

Em direção ao simples objetivo

De ter um rosto que fosse seu

Um olhar e um assuntar mundo

Que viesse de seu aprendizado

Com seus próprios passos trilhar

O Caminho de San Thiago

Para enfim se conhecer

Ninguém cresce ou aprende nada

Se não estiver no caminho

Do aprender a aprender

Criar uma memória desvinculada

De qualquer outro peregrino

Que não seja você

Descobrir as respostas

Fazer as perguntas

Se autoconhecer

Parar de ser vítima

Sair do castigo

Amanhecer

Superar os invisíveis estigmas

Que há no código genético

Mochila nos ombros

Pisar os ossos nos escombros

Do ácido desoxirribonucléico

Ter a coragem de caminhar

Outro tanto, chegar a outro

Porto. No rosto deixar cair

As lágrimas dos ferimentos

Abertos. Irmão poder chamar

O semelhante companheiro

De estrada. Saber do que se nutre

A vida nova. Se de outros sais

Que não sabemos. De outras

Terras que descobriremos

Para saber o que é ter

Um tanto assim de paz

Afinal superar as trevas

Quebrar as grades

Libertar-se enfim

Da prisão demente

Do “pecado dos pais”.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 19/04/2010
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