O ANJO DA MINHA RUA

Acordei aquela manha como se tivesse acordado de um longo pesadelo.

Minhas mãos estavam dormentes e meus pés estavam estranhamente frios.

Minha língua estava ácida, de uma acidez nunca sentida. Como se estivesse grossa de sal.

Olhei para o céu, que estava tão perturbado quanto eu. Ele estava rajado e me parecia sinistro e indiferente.

Fui até a sacada de minha casa como faço todas as manhas para olhar tristemente a rua. Olho-a todos os dias e sei que ela estará lá sempre igual.

Com o silencio das manhas e seus pássaros de cantar distantes e angustiados. Mesmo assim, vou vê-la e entristeço-me ainda mais. Volto, então meus olhos para os lados onde sopram os ventos que vem das montanhas que também devem olhar para mim, indiferentes e vazias. Elas tem uma eternidade que não serve para coisa alguma, mas que mesmo assim, as invejo.

Neste dia porém, minha rua tinha algo de novo. Havia um corpo caído no chão. Que fazia um corpo de criança caído no chão, àquela hora da manha?

Desci correndo pelas escadas,com minhas pernas movidas pelo instinto da solidariedade e da curiosidade misturados. Abri a porta num movimento brusco e atabalhoado. As chaves pareciam não obedecer minhas mãos.

Enfim estou à rua que continua deserta, há não ser pelo corpo franzino ali no chão. Meu Deus, perguntou dentro de mim meu espírito corriqueiro e humano. Estaria morta?

Acerquei-me do seu corpo, sem ter qualquer experiência da situação. Ela havia caído de um andar do prédio em frente, mas estava viva. Sua respiração ao contrário, era suave.

Eu estava atônito e assoberbado, mais assoberbado que atônito. Ela estava com hematomas por todo o corpo. Seu rosto estava sujo de sangue impregnando a testa e o cabelo. Mas ao contrário do que se podia esperar, ela levantou-se e sorriu para mim. Um sorriso ainda tímido, ainda feio, mas um sorriso com vida, como são os sorrisos todos.

Fiz perguntas, mas ela nada respondeu. Ela tomou-me pela mão e apontou um caminho.

Fui andando com ela pela rua, cheio de dúvidas e querendo saber se estava bem, o que tinha lhe acontecido etc..Ela apenas acenava com a cabeça que tudo estava bem e dizia baixinho que estava bem, muito bem.

Descemos a rua onde moro, ela parou em frente a uma flor e a apontou. Era uma flor branca, que eu já havia visto, porém não cujo nome não sabia.

Ela me disse que era a flor da inocência e que esta flor só nascia nas manhas e que morava em nosso coração.

Disse que devia olhar para dentro de mim quando quisesse vê-la. Minha cabeça curvou-se automaticamente, como se querendo olhar para o meu coração. Fiquei um tempo olhando para meu peito e minha mente viu, que meu coração estava deserto.

Depois ela apontou-me o céu e disse que estava escuro porque Deus estava zangado com todos os homens, porque eles não haviam escovado os dentes.

Ela me confirmou que Deus era bonzinho, mas que não gostava de ser contrariado.

Eu a convidei para ir comigo a minha casa, queria cuidar dela. Eu a sentei no sofá, tirei seus sapatos e dei-lhe um pedaço de bolo. Ela agradeceu e disse que sua amiga Talita, havia ganho um sapato novo no seu aniversário, que era muito bonito. Era vermelho, confirmou.

Ela parecia cansada. Eu deitei o seu corpinho machucado e cantei uma canção bizarra de infância, enquanto que tropegamente tentava acariciar seus cabelos . Ela dormiu serena como um anjo. Eu também dormi ao seu lado, pensando porque o mundo era tão estúpido, porque somos tão brutalizados, porque maltratamos tanto as flores e as crianças. Porque as flores da inocência morreram dentro de nós tão cedo?

Quando acordei, ela não estava mais lá. Corri na janela, mas a rua continuava deserta. Fui até o ponto onde havia visto as flores brancas, mas elas também não estavam mais onde estiveram. Estava agoniado, perplexo e muito cansado.

Quando olhei no espelho, fiquei estarrecido. Eu tinha o corpo coberto de hematomas. Havia sangue endurecido no meu rosto e nos meus cabelos esgarçados.

Corri para me lavar, mas o sangue continuava lá e não saia. Eu estava dolorido e sujo como um cachorro cortado pelos dentes dos cães mais fortes e maltratado pela fome e pela vizinhança. Já não podia caminhar, estava machucado por dentro, como se tivesse eu caído do 6º andar ou coisa que o valha.

Sentei-me no chão como que escorregando pelas paredes sobre os calcanhares e minha cabeça pendeu para frente. Contemplei meus pés imundos, depois subi os olhos e vi meus joelhos ralados, mais ao alto parei-os no meu peito que parecia de vidro moído, e doía até mesmo para respirar.

Contudo, vi que a dor tinha gerado uma flor nele. Uma flor branca, que nascia no centro do peito. Lembrei-me da menina e de suas palavras e fiquei enternecido. As lágrimas vieram pela minha face impunes e chegaram até o peito. As lágrimas aliviaram-me, regaram minha alma e aquela flor branca, que de agora em diante, eternamente se chamará Isabela.

Pois , foi ela que me que ensinou que só as lágrimas de dor ou de alegria, podem replantar a inocência dentro de nós.

Celio Govedice
Enviado por Celio Govedice em 08/04/2008
Reeditado em 01/11/2011
Código do texto: T936211
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