HEBETUDE I a XII
HEBETUDE I (Inércia Mental) (01/10/2010)
Corria a Lua no chão, por entre as folhas,
enquanto os galhos se moviam pelo breu,
na implacável reunião de suas escolhas.
Embora o veja, pressinto não ser meu
esse mundo que explode em tantas bolhas:
talvez suspeite que o mundo seja teu.
Esse mundo que a mim não pertenceu,
que preferia, até mesmo, ter criado,
para dar-te de presente, envolto em véu.
E me percebo, ao contrário, presenteado,
como se fora tua presença o céu
que, sem acanhamento, vejo ao lado.
Tapete mágico sob os dedos eu desfiz,
enquanto a Lua escorre, em nostalgia,
por entre as flores da noite, em escala gris,
num ziguezague lento, quando eu cria
possuir maior valor que o som do giz
que em quadros-negros da alma me escrevia.
HEBETUDE II
Corria a Lua nos quadros de seu rosto
e estranhamente mudava de expressão,
passava logo do prazer para o desgosto
e eu não sabia se nessa mutação,
essa camada dos ventos frios de agosto,
ela mesma expressaria uma emoção
ou se era simplesmente a clara luz
que lhe moldava os traços em escala
de azul e cinza, quando se produz
transformação mais rápida que a fala...
Era o fulgor a brilhar dos olhos nus
ou só o reflexo da Lua, em plena gala?
Só sei quanto mudava e parecia,
em momentos etéreos, cristalina,
depois mostrava-se lúgubre e sombria.
Se quem andava a meu lado era a menina
ou outra sombra que para mim sorria,
eu nem sabia, ao gotejar da sina...
HEBETUDE III – 17 Abril 2023
Vou penetrar no inconsciente coletivo,
nessa ânsia de invadir teus pensamentos
e marcar bem o ponto em que é mais vivo
o local de teus melhores sentimentos
e nesse ponto eu deixarei meu crivo
para o domínio dos mais puros julgamentos.
Pois do exterior, aparentemente,
nâo atingi teu âmago, apesar
de toda busca em meu esforço ingente,
pelo tanto que envidou o meu buscar
dessa luz que vem de ti mais aparente,
que desejava com minha cor mesclar.
Se conseguir invadir a noosfera
e interferir diretamente nesse nômeno,
como nos disse Kant, quem me dera!
E transformado em natural fenômeno,
outros amores desprezando nessa esfera,
configurado ali qual teu homônimo.
HEBETUDE IV
Sei do caminho para o inconsciente coletivo,
basta perder-me inteiramente em hebetude,
tirar da mente tudo quanto seja ativo,
deixar que o devaneio que me ilude
tome conta do consciente e que o motivo
que me levou até ali tão só me escude.
Sem ser eu mesmo invadido por terceiros,
percorrerei as mil ladeiras do infinito,
vejo das vidas mesmo os derradeiros
momentos da experiência de um aflito
coração e encararei até os primeiros
instantes em que lançou primevo grito.
Assim percorro os mais estranhos corredores,
bem longe da euclidiana geometria,
onde o passado no amanhã sem cores
ainda se esconde e minha frente eu percebia
perdida para trás, quantos pendores
incrustrados nesse nada em que jazia.
HEBETUDE V
Ali percorro as alamedas da memória,
enquistado em mim mesmo, em tal buscar
e então me vejo arrastado pela história,
sem que um só passo por mim me atreva a dar,
onde a glória se confunde com a escória
e contra o vento sou levado a velejar.
Sou como bola de luz sobre a esplanada,
espalho luz e sombra, em branda pluma,
sobre os milhares de arquétipos do nada,
porém sei que para ti minhalma ruma,
desfeita em som, refeita em alvorada,
caminho abrindo como o faz verruma.
Procuro um solo para minha semente,
sou mais que esperma, sou meu ser inteiro,
atraído por ti em marcha ardente,
que me faz percorrer, cravo ligeiro,
esse universo mágico e intangente,
até alcançar o meu fado derradeiro.
HEBETUDE VI – 18 abril 2023
Eu te vejo à distância e te procuro,
mas quanto mais me esforço, mais me afasto,
penso estar num espelho e me descuro,
ao me afastar, já perco todo o rastro,
desisto enfim e nesse instante obscuro,
em que cortei da mente todo o lastro,
junto de ti me encontro, de repente,
são outros os parâmetros do mundo,
aqui é inútil exercer esforço ingente,
mostrar ser audacioso ou iracundo,
tudo decorre ao desfastio da gente,
qualquer esforço nos lança num profundo
espacejar dos astros, só se alcança
o que se quer quando não mais se busca,
quando se tenta com alma de criança,
que a qualquer orientação logo se musca,
para se ver atraída sem tardança
pela própria atração que assim a ofusca.
HEBETUDE VII
Pois tão somente quando a sombra da intenção
se põe de lado e a inércia nos domina
é que funciona a lei dessa atração,
mas encontrar esse teu núcleo é a minha sina,
o desejo me revelas de teu coração,
que espera imóvel enquanto me fascina.
Assim me entrego ao capricho dessa esfera
e junto a mim estás sem mais tardança,
os dois retalhos da mesma atmosfera,
nesse suspiro mútuo que me alcança
e alcanço a ti na mesma noosfera,
em que se mesclam desespero e a esperança.
Pois é assim que dentro em ti penetro,
ao mesmo tempo que penetras dentro em mim,
nessa canção composta num só metro
e é quanto o meu amor alcança enfim
apossar-se finalmente desse cetro
que desde sempre me foi guardado assim.
HEBETUDE VIII
Mas nesse encontro não ocorre o que se quer,
mas o que o leme dos arquétipos pretende:
em mim és homem e em ti serei mulher,
nessa mescla de sonhos que se intende,
quando se deixa de ocultar quaisquer
das emoções, mesmo a que mais ofende.
Há muito mais nesse encontro de saudades
que uma pura e liminar demanda,
compartilhamos lucidez e insanidades,
em muito mais do que o desejo manda
e no fulgor dessas imperiosidades,
tal sintonia nos percorre banda a banda.
E nesse ponto vejo queimar-se a mente
quando o mundo se rebolca na loucura,
forte caráter precisa estar presente
para enfrentar a luz da mente pura,
ou indumentária de emoção plangente
que muito além da vida assim perdura.
HEBETUDE IX – 19 abril 2023
De certo modo, é como desovar
ou permitir que se seja desovado,
jamais se saberá o que encontrar
e o mais certo é ficar desapontado,
não se descobre o que se foi buscar,
mas somente o que no alvo foi achado.
Esse é o momento então de se aceitar
a denúncia da própria insignificância
e conviver com o que é possível alcançar
ou então, na mais altiva dominância,
aquele ninho fértil transformar
naquele que se quer com mais constância.
Então se pode enfrentar a rejeição,
forte demais para qualquer conquista
e se tornar na própria humilhação
ou então dominar inteira a pista
e descobrir, na maior consternação,
que se fez outra mulher que assim se avista.
HEBETUDE X
E novamente aqui se encontra a hebetude,
mais do que tudo é preciso a aceitação,
sem procurar se impor nossa atitude,
mas se deixar levar pela emoção,
que cresce em torno e a alma nos ilude
e pode assim nos devorar o coração.
Porque essa inércia é como a gravidade
que a pedra puxa porém não esfacela,
apenas a quer tomar em integridade,
sem turbilhão, sem luta, sem procela,
para o interior de sua nuclearidade,
quando se deixa arrastar por essa vela.
Pois é assim que deve ser, nessa mistura
de alma em alma, sem imposição
e sem render-se à concordância pura,
mas onde existe uma igual dominação
de parte a parte, em vezo de ternura,
por meandros e nós de cada coração.
HEBETUDE XI
Mas a Lua que escorria pelas folhas
me desventrou do sonho da hebetude:
“Ó homem que o inconsciente assim desfolhas,
não esperes alcançar igual virtude,
demasiada a pretensão que a ti antolhas,
talvez versejes, porém tua alma é rude.”
“Não dedicaste um só de teus momentos
ao desenvolver de qualquer meditação,
pura a vaidade de teus julgamentos,
que os versos nem são teus, outros te dão,
que ultrapassaram seus próprios sofrimentos
e por teus dedos só escorre a sua paixão.”
“E ao pretenderes ter acesso ao inconsciente,
nessa tua tola premência de impostor,
não te atrelaste mais que ao consequente
fluir de devaneios em místico torpor,
desiste assim desse desejo irreverente,
só te limites ao decantar do amor.”
HEBETUDE XII
Porém a Lua que me percorre o rosto,
animada pelo vento em fantasia,
não consegue produzir o meu desgosto,
já que essa imagem que perfeita eu via,
mesmo que envolta em parreiral de mosto
é muito mais valiosa que a poesia.
Não creio nos meus versos – creio em ti,
em ti eu busco a fundação do amor,
ainda escuto a louca voz que ouvi,
a gama ardente de notas sem pudor,
contra a aquarela de cinza em que nasci,
mostrando o mundo intenso de esplendor.
A ti me entrego, qual na lenda de Platão,
metade por metade, a busca enfim
enrodilhada nessa inteira devoção,
és companheira de minhalma assim
e a mente te abro, despida de razão,
sou teu começo e tu serás meu fim.