Réveillon Antecipado

Penúltimo dia do ano

Dia em que me sinto leviano

Dia em que me debruço sobre o piano

Tomo jeito, me aprumo, me endireito

Puxo o assento e tomo lugar

Encarno o compositor, o músico, o alento

Me questiono, me permito talento

Sinto os dedos formigarem, flutuarem

Nas teclas, em notas, sustenidos e bemóis

Para mim é tudo preto no branco,

Tudo branco no preto, vertigem

Engalfinhando entre arranjos perfeitos

Entrelaçado entre dedos ágeis

Transitando por territórios suspeitos

Revelado meus pontos frágeis

O nó na garganta, apertado

Transformado, revigorado

Toma forma e se solta em melodia

Desalinhando meus chacras

Entornando meu tantra

Sinto fluir o ritmo, o sangue entregue, o esforço

Sinto o pensamento ruir imerso em atenção, remorso

Assim como uma melodia, me sinto entregue, usado

Entretendo o tempo, fugindo do essencial, relapso

O tempo passa e não percebo

O tempo passa e não me vejo

Não percebo, não me olho

Não suspiro, não me enxergo

De repente um novo dia

Último dia do ano

Últimas dúvidas, últimos momentos

Navego na véspera do entardecer

Nos mares do divagar, no pertencimento devagar

Os dedos pedem força

Os dedos perdem força

As teclas se embaralham

As notas se cansam

Emanando um grito, um tapa

Alterando o som, a taça

E uma pergunta não se cala

Seria um piano ou uma maca?

Nota a nota, desfaleço

Nota a nota, esmoreço

A cada nota um tiro

Cada nota, um cisto

Na mente ou no peito

Um buraco, sentimento vazio

Termino meu ato e ouço gritos

O celebrar, a comemoração

Populares impopulares

Tilintares e brindes

E da taça, aquela taça

Ainda marcando seus lábios, imaginário

Ouço o tom, o riso

E uma única nota se sobressai

E qual seria se não fosse dó?

Entregue à sorte, azarado demais para esquecer

Em minha mente subserviente

Um looping, um refrão

Um déjà-vu concentrado em si, ou seria em mim

Um momento repetido sem freios, sem meios

Intempérie ressonando vigor

Aguardo a passagem, o réveillon, os fogos

Para acender minha alma, meu karma

Em meus dedos, em minha mente

Não preciso de si, necessito de mim,

Do eu, do meu, do sou

Necessito de sol, de paz

Para em definitivo aproveitar a luz

O brilho artificial, a meia noite lá fora

O próximo ano solar trará um fim

Ao meu ano lunar que já fora esquecido

Ou seria enterrado?

Termino a canção

Entonando os atos

Inspirado e estupefato

Pelo som do livramento

Pelo tom do calendário

365 novas chances

De reencontrar-me

De curar-me.

De me escutar

De me notar

Na música

Na vida

No agora.

Flavio Marcondes
Enviado por Flavio Marcondes em 27/12/2022
Reeditado em 27/12/2022
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